Como o AmazonFACE prevê o futuro

Na Amazônia, a 100 quilômetros ao norte de Manaus, está sendo desenvolvida uma máquina do tempo peculiar. Seu propósito? Transportar a floresta para um futuro não tão distante: 2060, quando a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera terrestre estará 50% mais elevada, graças à poluição humana.

(Maria Clara Ferreira Guimarães/AmazonFACE/Divulgação)

Para alcançar essa viagem temporal de 35 anos, os cientistas planejam gradualmente elevar a concentração de CO2 na atmosfera ao longo de uma década. A intenção é compreender como a floresta reagirá quando exposta a uma dose amplificada desse gás de efeito estufa, proporcionando um vislumbre do futuro do ecossistema mais diversificado do planeta – lar de uma em cada dez espécies existentes no mundo.

Conhecido como AmazonFACE, esse experimento inovador é resultado de uma colaboração entre o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o MetOffice do Reino Unido. O termo FACE deriva de “free-air CO2 enrichment” – enriquecimento de CO2 ao ar livre.

A estrutura básica do experimento consiste em seis anéis, cada um composto por 16 torres de 35 metros de altura, dispostas em um círculo com 30 metros de diâmetro. São essas torres que liberarão o ar enriquecido com CO2 dentro do perímetro do círculo.

À primeira vista, a configuração se assemelha a uma versão tecnológica do Stonehenge, replicada seis vezes na densa paisagem amazônica. Até o momento, dois desses anéis estavam em pé, enquanto os outros quatro deveriam ser concluídos até o final do ano.

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Seis guindastes de 45 metros de altura, utilizados para montar as torres, permanecerão instalados ao lado dos anéis ao longo dos dez anos de duração do experimento. Eles serão essenciais para coletar dados até das árvores mais altas.

Apenas três dos anéis liberarão ar com carbono adicional, enquanto os outros três funcionarão como grupo de controle, emitindo ar ambiente comum em vez da versão enriquecida. Essa abordagem permitirá a comparação dos resultados com e sem a dose reforçada do gás.

Você pode se perguntar por que construir os anéis, em vez de simplesmente analisar um trecho intocado da floresta. A resposta está na interferência das torres na rotina do ecossistema, começando pelo vento constante gerado por elas, algo incomum na atmosfera úmida e tranquila da Amazônia. Para garantir resultados confiáveis, o grupo de controle precisa ser idêntico em todas as variáveis, exceto na concentração de CO2.

O perímetro dos anéis, como observado nas fotos, não está isolado do entorno. O experimento não ocorre em uma estufa; uma parcela do gás inevitavelmente escapa para cima e para os lados. Por isso, as torres precisam liberar CO2 continuamente para manter a concentração estável dentro dos anéis.

Computadores calculam em tempo real a taxa de liberação de dióxido de carbono em cada anel, levando em consideração variáveis como velocidade e direção do vento (durante a noite, o maquinário é desligado devido à ausência de fotossíntese).

O sistema opera de maneira semelhante ao ar-condicionado de uma loja. Com a constante entrada e saída de clientes, a porta permanece aberta por períodos consideráveis. No entanto, uma cortina de ar é criada, formando uma barreira invisível entre o interior e o exterior.

Em todo o mundo, já foram concluídos alguns experimentos FACE em florestas. Esses estudos foram realizados em ecossistemas jovens, compostos principalmente por uma única espécie de árvore, e são classificados como de primeira geração. Outros dois, de segunda geração, estão em andamento em florestas maduras na Inglaterra (BIFoR FACE) e na Austrália (EucFACE). O experimento brasileiro será o terceiro dessa série.

A versão amazônica é pioneira, sendo o primeiro FACE em uma floresta tropical de alta biodiversidade. Os experimentos na Inglaterra e na Austrália foram realizados em ecossistemas relativamente simples, onde predominam, respectivamente, carvalhos e eucaliptos.

“A quantidade de espécies que temos no Brasil é impressionante”, observa Adriane Esquivel Muelbert, uma professora da Universidade de Birmingham que trabalha com o BIFoR FACE e agora liderará a área de biodiversidade do FACE brasileiro. “Aqui, temos três espécies predominantes. No AmazonFACE, são mais de trezentas em cada anel.”

(Ricardo Lima/Getty Images)
Prevendo o futuro

Os pesquisadores não podem prever o resultado do experimento, mas têm uma ideia geral dos possíveis efeitos do aumento de CO2 na Amazônia. Para entender melhor, é necessário revisar os conceitos básicos de biologia.

As plantas não se alimentam; elas produzem seus próprios carboidratos por meio da fotossíntese. Embora você já tenha estudado essa reação química na escola, é útil revisar: utilizando a energia do sol, as plantas captam o dióxido de carbono atmosférico (CO2), combinam-no com água (H2O) e produzem açúcares (C6H12O6). Como subproduto, liberam seis moléculas de oxigênio (O2) para cada molécula de açúcar.

Com o aumento do CO2 na atmosfera, as plantas têm automaticamente mais matéria-prima para a produção de alimentos. Portanto, os pesquisadores esperam que a taxa de fotossíntese das plantas dentro do perímetro do AmazonFACE aumente significativamente. A questão é: para onde vai toda essa energia?

O que os pesquisadores desejam descobrir é se esses carboidratos serão direcionados para o crescimento dos troncos. A madeira é a parte mais rígida e durável da planta – os açúcares utilizados para formar a madeira permanecerão intactos por séculos, especialmente em árvores de longa vida. Isso significa que os átomos de carbono associados a essa função permanecerão fora da atmosfera por um longo período, evitando o efeito estufa.

No entanto, não há garantia de que isso ocorrerá. O desfecho mais pessimista é que o excesso de açúcar seja utilizado para produzir algo mais transitório, como folhas, que têm um ciclo de vida mais curto do que a árvore em si, resultando em uma retenção de carbono por um período mais curto. Outra possibilidade é que esses açúcares sejam direcionados para as raízes, onde seriam utilizados em trocas de nutrientes com fungos.

O solo onde o AmazonFACE está sendo implantado é representativo de cerca de 60% da Amazônia e possui uma característica proeminente: é pobre em fósforo. Esse nutriente desempenha um papel crucial na vida na Terra, fazendo parte das membranas celulares e das moléculas de DNA, RNA e ATP – esta última é uma molécula energética fundamental para os processos vitais de um organismo. Sem fósforo, a produção de carboidratos é inútil, pois não é possível construir novas partes de seres vivos.

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Assim, é possível que as árvores do AmazonFACE utilizem o CO2 adicional para produzir quantidades extras de exsudatos, um líquido calórico liberado pelas raízes e altamente desejado pelos fungos. A ideia é que os fungos “paguem” por esse alimento fornecendo fósforo em troca. No entanto, a disponibilidade de fósforo para os fungos é incerta; se a concentração desse elemento no ecossistema como um todo for insuficiente, o processo pode estagnar.

Um complicador significativo é que cada planta responde de maneira única ao aumento de CO2, e a Amazônia abriga uma grande diversidade de espécies, tornando impraticável acompanhar cada uma individualmente. Para contornar esse problema, os pesquisadores categorizam as espécies com base em suas características, criando algo semelhante a uma planilha de Excel.

Por exemplo, se dois arbustos possuem características semelhantes, como diâmetro de caule, tolerância à seca e taxa de fotossíntese, eles ocupam nichos ecológicos semelhantes e provavelmente responderão de maneira parecida ao aumento de CO2. Isso é conhecido como o espaço funcional de cada planta, permitindo a comparação dos resultados entre os anéis com CO2 e os anéis de controle, mesmo que não haja muitas espécies compartilhadas entre eles. Além disso, essas categorias facilitam aprimoramentos nas simulações computacionais usadas para prever o futuro da floresta.

Uma preocupação é que as lianas, trepadeiras que se assemelham a grandes cipós, possam prosperar mais do que as árvores. Isso é problemático não apenas porque as lianas podem sufocar outras plantas, mas também porque são reservatórios de carbono menos confiáveis.

Rios voadores

Outra linha crucial de investigação é entender as repercussões no ciclo da água. Ao observar uma folha no microscópio, é possível identificar uma série de estruturas conhecidas como estômatos. Essas pequenas aberturas funcionam como portas que se abrem para permitir a entrada de gás carbônico durante a fotossíntese. Contudo, enquanto estão abertas, também possibilitam a saída de vapor d’água.

Essa transpiração contínua, ocorrendo simultaneamente em todas as plantas, contribui significativamente para a umidade que se acumula diariamente na atmosfera da floresta – não é por acaso que quase sempre chove durante as tardes na Amazônia. Na parte ocidental da floresta, próxima à cordilheira dos Andes, onde a influência do mar é mínima, cerca de 80% da precipitação é resultado da evaporação dos estômatos. Por outro lado, nas proximidades de Belém, mais próximas do mar, essa taxa cai para aproximadamente 20%.

Com a elevada concentração de CO2, os estômatos necessitam permanecer abertos por menos tempo para capturar a mesma quantidade de gás. Como resultado, quanto mais tempo permanecerem fechados, menos água as plantas liberarão na atmosfera, o que implica em uma diminuição da ocorrência de chuvas.

O transporte de umidade da Amazônia para outras regiões do Brasil e da América Latina desempenha um papel vital no clima do continente; portanto, qualquer alteração nas taxas de evaporação pode afetar a agricultura e os ecossistemas vizinhos.

Os pesquisadores utilizarão uma variedade de equipamentos para monitorar as plantas. Um dispositivo particularmente interessante é o sensor de fluxo de seiva, que consiste em agulhas fixadas no tronco da árvore para detectar o movimento do líquido interno. Se houver um grande fluxo de água ascendente, indica que as árvores estão transpirando mais pelos estômatos. Além disso, é possível medir a umidade do solo e a transpiração diretamente nas folhas, utilizando o mesmo equipamento utilizado para detectar a fotossíntese.

(Maria Clara Ferreira Guimarães/AmazonFACE/Divulgação)
Muito quente

Embora o AmazonFACE tenha sido concebido para avaliar uma variável específica – a concentração de CO2 -, a floresta em 2060 será afetada por diversas mudanças. O aumento do calor e das secas, consequências diretas do aumento dos gases de efeito estufa, como o CO2, é uma delas. Mesmo que as emissões de carbono fossem eliminadas hoje, a temperatura média da Terra ainda subiria 1,6 °C até 2060, e até o final do século XXI, esse aumento poderia chegar a 1,4 °C.

Esses gases permitem a passagem da luz solar, aquecendo o solo, mas também impedem parte do calor irradiado do solo de escapar para o espaço na forma de radiação infravermelha. Como resultado, é previsto que as chuvas diminuam entre 10% e 20% no sul e leste da Amazônia nas próximas décadas.

Embora o experimento não tenha sido projetado para estudar as consequências do aumento de temperatura, ele acabará por fornecer dados relevantes, graças às variações climáticas sazonais. Ao longo dos dez anos do experimento, secas e ondas de calor, causadas por El Niños, aquecimento do Atlântico, ou ambos, podem ocorrer, possibilitando comparações entre diferentes cenários.

Para a Amazônia, o aumento da concentração de CO2 tem efeitos ambíguos. Por um lado, o aumento das secas e ondas de calor, combinado com o desmatamento, pode levar partes significativas da floresta a um ponto crítico conhecido como “ponto de virada”. A partir desse limite, previsto em simulações computacionais, uma reação em cadeia de degradação do ecossistema poderia ocorrer, resultando na perda crônica de biodiversidade e na transformação da floresta em uma paisagem mais semelhante a uma savana.

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Por outro lado, o aumento nas taxas de fotossíntese, devido ao CO2 adicional, pode permitir que as plantas prosperem e resistam a esse processo, adiando ou até impedindo completamente o “ponto de virada” em algumas regiões. O AmazonFACE será fundamental para explorar essas possibilidades e aprimorar os modelos computacionais que tentam prever o destino da Amazônia diante das mudanças climáticas globais.

Preservar a saúde da floresta é crucial para proteger o planeta das consequências da atividade humana. Cada árvore queimada representa uma liberação de carbono na atmosfera, contribuindo para o efeito estufa. Se toda a floresta fosse perdida, suas 123 bilhões de toneladas de carbono equivaleriam a 140 anos de emissões de poluentes.

Embora a degradação não ocorra de forma uniforme nem rápida, em 2021, a Amazônia emitiu mais carbono do que absorveu pela primeira vez na história registrada. O desastre já começou, e embora não seja possível reverter completamente, nos resta mitigar suas consequências, e experimentos como o AmazonFACE são fundamentais para desenvolver estratégias eficazes nesse sentido.

Fonte: Super; AmazonFACE.

Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

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