Restaurar o Cerrado apenas com árvores não é o melhor caminho

O Cerrado está enfrentando um alarmante processo de destruição, evidenciado por um aumento de mais de 40% no desmatamento do bioma em 2023. Diante desse cenário, muitos defendem veementemente a necessidade de sua restauração. No entanto, a questão crucial é como realizar essa tarefa monumental, repleta de obstáculos aparentemente intransponíveis. Recentemente, um experimento trouxe uma luz de esperança ao sugerir métodos para restaurar com sucesso o estrato herbáceo dessa região.

Restaurar o Cerrado apenas com árvores não é o melhor caminho
Chapada dos Veadeiros, no Cerrado — Foto: Getty Images

Diferentemente de uma floresta, o Cerrado é uma savana, predominantemente composta por espécies heliófitas, que prosperam sob a luz solar direta. Seus elementos principais são gramíneas e plantas de pequeno porte, algumas poucas árvores e arbustos. Portanto, simplesmente plantar árvores não é suficiente, como demonstram inúmeras tentativas fracassadas. “É um grande equívoco tentar restaurá-lo dessa maneira”, adverte a engenheira florestal Giselda Durigan, do Laboratório de Ecologia e Hidrologia do Instituto de Pesquisas Ambientais do Estado de São Paulo, que não esteve envolvida no experimento. “As árvores representam menos de 20% das espécies de plantas do Cerrado e não devem cobrir mais de 50% do solo.”

Guilherme Gerhardt Mazzochini, biólogo e professor visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduziu o experimento durante seu pós-doutorado e destaca os desafios enfrentados na restauração do Cerrado. “Desde a coleta de sementes até a disponibilidade de equipamentos necessários para realizar a restauração em grande escala, há uma série de obstáculos”, explica. Um dos principais entraves para essa empreitada na região, especialmente em áreas anteriormente utilizadas como pastagens ou próximas a locais degradados, é a invasão por espécies exóticas.

Principalmente gramíneas africanas, como as braquiárias (Urochloa spp.), o capim-gordura (Melinis minutiflora) e o capim-gambá (Andropogon gayanus), foram introduzidas no Brasil para pastagens devido ao seu rápido crescimento. Essas plantas contrastam com as espécies nativas do Cerrado, que possuem estratégias de crescimento mais lentas e estão adaptadas aos solos ácidos desse bioma. Assim, a prática de modificar o solo com a aplicação de cal para correção do pH, visando à instalação de pastagens, coloca as espécies nativas do bioma em desvantagem competitiva frente a essas invasoras.

A fotossíntese de plantas do Cerrado estão sendo afetadas pelo aumento de temperatura | Florestal Brasil

Em outras palavras, se as espécies invasoras conseguem se disseminar e encontrar condições propícias em solos modificados, têm um potencial considerável para dominar áreas em processo de restauração. “Essa invasão não apenas compromete a recuperação da biodiversidade nativa, mas também tem um impacto negativo no funcionamento ecológico da área em restauração”, explica Mazzochini. “Portanto, o manejo efetivo das espécies exóticas e a criação de condições favoráveis para as espécies nativas são aspectos cruciais para o sucesso da restauração do Cerrado.”

Com o intuito de alcançar esse objetivo, Mazzochini e seus colaboradores, sob a coordenação do biólogo Rafael Silva Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), deram início ao projeto “Restaurando ecossistemas neotropicais secos – será a composição funcional das plantas a chave para o sucesso?”. “A ideia de conduzir essa pesquisa surgiu enquanto trabalhávamos em um projeto voltado para aprimorar técnicas visando aumentar o sucesso da restauração do estrato herbáceo do Cerrado”, relata Mazzochini.

O objetivo era explorar como os atributos funcionais das espécies poderiam influenciar o êxito dos programas de restauração. Para isso, o enfoque inicial foi compreender as características morfofisiológicas relacionadas às estratégias ecológicas das plantas do Cerrado e investigar como sua composição poderia contribuir para uma restauração mais eficaz e sustentável, reduzindo a invasão de gramíneas exóticas.

Estudo aponta diretrizes para a restauração do Cerrado | Florestal Brasil

O biólogo Rafael de Oliveira Xavier, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), especialista em invasões biológicas e coautor do experimento, acrescenta que o trabalho também visava entender até que ponto as características das comunidades de gramíneas nativas do Cerrado (como o número de espécies, a presença de determinadas plantas e a variabilidade em suas características) as tornam mais resistentes à invasão pelas espécies africanas, que dominam praticamente todas as áreas de pastagens abandonadas na região do Cerrado, onde tem sido tentada a recuperação das características da vegetação original.

Portanto, além de avançar teoricamente sobre o que torna as comunidades tropicais mais resistentes às invasoras, a intenção era que os resultados fossem aplicados diretamente no planejamento da restauração do Cerrado, utilizando combinações de espécies e características com maior probabilidade de resistir à chegada das gramíneas africanas.

O estudo foi conduzido em uma área previamente utilizada como pastagem, no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. O experimento teve início em novembro de 2019 e envolveu a semeadura de oito espécies nativas do Cerrado, selecionadas por serem frequentemente usadas em projetos de restauração. “Dividimos a área designada para o experimento em 302 parcelas de dois por dois metros, onde deliberadamente variamos o número de espécies semeadas por parcela”, relata Mazzochini.

Seca avança no Cerrado | Florestal Brasil

Essa variação incluiu cinco níveis: zero (parcelas controle, sem semeadura), uma (monoculturas), duas, quatro e oito espécies, ajustando também a densidade de semeadura para cada uma delas. O objetivo era estabelecer um gradiente de diversidade para compreender como diferentes combinações e densidades de espécies influenciariam a resistência à invasão por espécies exóticas. “Após duas estações de crescimento, removemos todas as espécies exóticas emergentes nas parcelas, a fim de avaliar a resistência das comunidades à invasão, refletindo o efeito da diversidade e composição de espécies no processo”, explica Mazzochini.

Segundo ele, o estudo revelou duas descobertas fundamentais que contribuem significativamente para o aprimoramento das técnicas de restauração do estrato herbáceo do Cerrado:

1) A primeira descoberta é que a diversidade de espécies, especialmente aquelas com diferentes estratégias de raízes, aumenta a resistência à invasão por plantas exóticas. Enquanto algumas espécies conseguem extrair nutrientes independentemente, outras dependem de uma relação simbiótica com fungos micorrízicos, os quais se associam às raízes e trocam nutrientes pelo carbono produzido na fotossíntese.

Os pesquisadores acreditam que a menor invasão nas parcelas com maior diversidade de estratégias de raízes provavelmente permite uma exploração mais completa dos recursos do solo, já que esses fungos conseguem acessar nutrientes menos disponíveis para as plantas de forma mais eficiente. Esse conjunto diversificado de estratégias limita os recursos disponíveis para as espécies exóticas que demandam muitos nutrientes. No entanto, essa é uma hipótese que ainda precisa ser confirmada por meio de estudos adicionais.

2) A segunda descoberta importante é que o uso de uma espécie anual em alta densidade, como o andropogon nativo (Andropogon fastigiatus) – anteriormente popular em projetos de restauração devido à sua rápida taxa de crescimento e abundância de sementes – na verdade, facilitava a invasão de espécies exóticas. “Isso contradiz a expectativa de que tal espécie anual poderia prevenir a invasão, pois, após sua morte na estação seca, sua massa seca acaba protegendo o solo contra a dessecação e beneficiando as exóticas que conseguiram se estabelecer abaixo dela”, explica Mazzochini.

Para Xavier, os resultados do experimento têm implicações práticas significativas. “A principal é demonstrar que as invasões por gramíneas africanas não são obstáculos intransponíveis”, explica. Segundo o pesquisador, com um planejamento adequado e comunidades vegetais cuidadosamente planejadas, é possível restaurar áreas de Cerrado que resistam a novas invasões. “Embora o investimento inicial seja relativamente alto em termos de tempo e recursos financeiros, a médio e longo prazo, os benefícios são enormes, uma vez que os custos de manutenção tendem a ser muito mais baixos em comparação com as iniciativas convencionais.”

Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

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