Durante o século XVIII, o aroma do pau-cravo encantava europeus e movia embarcações comerciais entre a Amazônia e o Velho Mundo. Séculos depois, essa árvore histórica — símbolo da exploração colonial e da biodiversidade brasileira — foi redescoberta em áreas de influência da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, após mais de 40 anos sem registros oficiais.
A redescoberta ocorreu durante os Estudos de Impacto Ambiental da Usina de Belo Monte, conduzidos em 2008 pela Norte Energia, empresa concessionária da usina. A equipe técnica identificou 30 árvores matrizes em Área de Preservação Permanente (APP) e realizou o transplante de 11 exemplares em áreas sujeitas à supressão vegetal. Em 2024, a empresa alcançou um marco: a produção de mais de 150 mudas em viveiro próprio, destinadas à recomposição florestal.

Um passado de glória e destruição
O Dicypellium caryophyllaceum, também conhecido como cravo-do-maranhão ou canela-cravo, pertence à família Lauraceae e é uma árvore de médio a grande porte, podendo atingir até 30 metros. Sua casca violeta, perfumada e rica em eugenol, era extremamente cobiçada na Europa. Desde o século XVIII, a espécie foi intensamente explorada por colonizadores portugueses que cortavam as árvores para retirar a casca, utilizada como especiaria, medicamento e perfume.
Estudos históricos indicam que o pau-cravo era exportado em grandes quantidades a partir dos portos do Pará e do Maranhão. Somente durante a atuação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão no século XVIII, mais de 640 toneladas da casca foram embarcadas rumo à Europa. A planta, que chegou a rivalizar com o cacau em abundância e valor econômico, desapareceu rapidamente de muitas regiões amazônicas.
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Uma árvore que perfumava e curava
No auge da exploração, o pau-cravo era usado como substituto tanto do cravo-da-índia quanto da canela. Seu óleo essencial possui mais de 90% de eugenol, uma substância com propriedades anti-inflamatórias, fungicidas, antissépticas e analgésicas. Além disso, sua casca era usada como corante escuro, e sua madeira amarelada era aproveitada na construção civil e naval.
As formas de comercialização variavam: o “cravo fino”, obtido com maior cuidado, era enrolado em pequenos canudos e vendido a preços elevados; já o “cravo grosso” era a casca cortada de forma mais rústica. Ambas as versões eram amplamente exportadas para Lisboa, onde abasteciam o mercado europeu de especiarias.

Durante o século XVIII, o pau-cravo alcançou valores impressionantes no mercado europeu. Uma única arroba do “cravo fino” — cerca de 14,688 kg — podia ser vendida por até 9.600 réis, o que, em valores atualizados, equivale a aproximadamente R$ 720,00. Isso significa que o quilo da casca perfumada da árvore podia custar quase R$ 49,00, tornando-a uma das especiarias amazônicas mais valiosas da época. Essa valorização exacerbada impulsionou sua exploração predatória, com extrações intensivas que exigiam o corte completo das árvores. Já no século XVII, a Coroa portuguesa tentou conter os impactos econômicos dessa devastação, decretando, em 1683, a proibição da retirada da casca nas margens dos rios Capim e Tocantins por um período de 10 anos. Os infratores podiam ter sua carga confiscada e até ser deportados para fortalezas militares. No entanto, tais medidas visavam mais preservar a lucratividade da colônia do que garantir a sobrevivência da espécie — que acabou desaparecendo de grande parte de sua área original de ocorrência
O renascimento do pau-cravo no século XXI
Foi apenas séculos depois, por meio dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) realizados durante o licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que o pau-cravo foi redescoberto. Esses estudos, exigidos por lei em grandes empreendimentos, avaliam os efeitos das obras sobre a biodiversidade e os recursos naturais. Com base em levantamentos detalhados de flora, fauna, solo, água e comunidades humanas, os EIA permitem identificar riscos e propor medidas de mitigação e conservação. No caso do pau-cravo, o EIA não só possibilitou o registro da espécie como também foi o ponto de partida para ações concretas de preservação — demonstrando que, quando bem conduzido, o licenciamento ambiental pode ser uma poderosa ferramenta de proteção do patrimônio natural brasileiro.
Entre os resultados estão a identificação e proteção de 30 árvores matrizes em Área de Preservação Permanente (APP), o transplante para áreas de preservação permanente de 11 plantas localizadas em áreas de supressão vegetal e, no ano de 2024, a produção de mais de 150 mudas em viveiro próprio.

Graças às ações da Norte Energia, a espécie entrou em um novo capítulo de sua história. A empresa mantém um programa contínuo de monitoramento das árvores matrizes, coleta de sementes, produção de mudas e plantio em áreas de preservação permanente. Segundo Roberto Silva, gerente da empresa, “estamos falando de uma espécie com importância ecológica, cultural e histórica. Ao cuidar da flora, reforçamos nosso compromisso com a conservação da biodiversidade da Amazônia e o respeito à memória viva da floresta”.
As árvores encontradas estão localizadas nos municípios de Vitória do Xingu e Itaituba (PA), e em Buriticupu (MA). O retorno do pau-cravo ao radar da botânica brasileira também subsidiou pesquisas acadêmicas, incluindo uma tese de doutorado, e reaproximou comunidades locais do valor histórico de sua biodiversidade.
Lindomar da Silva Lima, identificador botânico que participou da expedição, afirma: “Quando a gente encontrou o pau-cravo foi uma alegria muito grande, porque era uma planta que ninguém conhecia, só os antigos falavam. Eu fico muito feliz de ter participado disso. Eu ajudei, apoiei, e vou contar essa história para meus filhos, meus netos, para eles já crescerem sabendo preservar”.
Um símbolo da devastação e da esperança
A história do pau-cravo é um alerta sobre os impactos da exploração descontrolada e, ao mesmo tempo, uma inspiração sobre a possibilidade de recuperação. Sua redescoberta marca não apenas um feito científico e ecológico, mas também uma oportunidade de reconciliação com o passado. Que sua fragrância possa novamente perfumar a floresta, não como produto de exportação, mas como símbolo de resistência ecológica e justiça histórica.
Fonte: Portal Amazônia, com complementações do artigo “O aroma desejado por toda a Europa” (Moro & Fausto, 2024)
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