Intervenção anti-seca no RS pode ter propiciado caça de cervos

Uma obra realizada em resposta à estiagem de 2023, nas proximidades de Porto Alegre (RS), está sendo apontada por uma entidade civil como facilitadora da caça de cervos-do-pantanal em áreas protegidas estaduais. Há preocupações com a diminuição da população regional dessa espécie ameaçada de extinção, e o governo estadual assegura estar tomando medidas para conter tais pressões.

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Um cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) nas unidades de conservação gaúchas. Espécie é o maior cervídeo da América Latina, podendo chegar a 130 kg. Foto: André Osório Rosa / Sema/RS

A seca severa que assolou o Rio Grande do Sul no ano passado levou o estado e vários municípios a decretarem situação de emergência. Em resposta, foram implementadas diversas medidas para garantir o abastecimento de água para a população, indústria e agricultura.

Uma das intervenções nas proximidades da capital gaúcha foi a desobstrução do “canal do DNOS”, ligado a uma barragem cuja água irriga cultivos em assentamentos rurais. Essa ação aliviou a escassez no rio Gravataí, que abastece mais de 700 mil pessoas em Viamão, Gravataí e Alvorada.

O canal, aberto em 1960 para drenagem de banhados e expansão de lavouras, tinha sido gradualmente assoreado ao longo das décadas. A liberação das águas foi realizada pelo governo estadual, utilizando equipamento pesado, barcos e servidores para remover sedimentos e vegetação do canal no início do ano passado. Entretanto, há preocupações de que essa obra tenha facilitado atividades de caça, especialmente do cervo-do-pantanal.

Acima e abaixo, a interligação do “canal do DNOS” ao Rio Gravataí e à “barragem do Incra”. Imagens: Relatório descritivo de desassoreamento 2023 / Corsan/RS

O antes e depois do desassoreamento da via fluvial. Imagens: Relatório descritivo de desassoreamento 2023 / Corsan/RS

Alexandre Krob, Coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca, destaca que a movimentação de máquinas e veículos criou uma via ao longo do canal, facilitando também o tráfego de barcos desde o rio Gravataí. Esse acesso mais fácil pode ter favorecido caçadores nas áreas protegidas.

Imagens obtidas pela entidade civil revelam vestígios de pelo menos um cervo abatido no ano passado, encontrado na Área de Proteção Ambiental (APA) do Banhado Grande, próxima ao Refúgio de Vida Silvestre (RVS) Banhado dos Pachecos. Krob aponta que os caçadores, além de visar jacarés e capivaras, não hesitam em atirar nos raros cervos-do-pantanal, consumindo a carne e o couro, enquanto os chifres são frequentemente levados como troféus de caça.

Crânio com chifres serrados e carcaça de cervo-do-pantanal localizados em fevereiro de 2023 na APA do Banhado Grande. Fotos: Instituto Curicaca / Divulgação

Uma fonte regional, que solicitou anonimato por receio de represálias, destaca que o aumento do movimento de caçadores está relacionado à abertura do canal e à suposta falta de fiscalização, pessoal, armamento e munição para proteger as reservas. Segundo a fonte, muitos caçadores aproveitam o nível elevado do rio Gravataí para alcançar áreas remotas que antes eram isoladas. Ela ressaltou à ((o))eco, por meio do WhatsApp: “Hoje só não caça quem não quer”.

Em contrapartida, a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado do Rio Grande do Sul (Sema) afirma que a reabertura do canal do DNOS não propiciou a entrada de caçadores nas áreas protegidas, especialmente no Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos. A Assessoria de Imprensa do órgão ambiental estadual, ao ser questionada pelo WhatsApp, declarou: “Não há dados sólidos e sistematizados que possam comprovar que isto realmente tenha se dado”.

A Sema alega que as patrulhas regulares não indicam um aumento significativo de caçadores e afirmam que o cervo-do-pantanal continua ocupando as margens do canal, deslocando-se facilmente de uma margem para outra.

O Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos (amarelo) e a Área de Proteção Ambiental do Banhado Grande (vermelho) são vizinhos do município de Porto Alegre (roxo). Mapa: Google Earth/Sema-RS/ObservaPoA/Mongabay

O órgão estadual reconhece a ocorrência de três cervos encontrados mortos na última década na APA do Banhado Grande, em um assentamento rural, mas ressalta que não há evidências incontestáveis de que a caça tenha sido a causa. No refúgio de vida silvestre, onde um cervo foi encontrado sem vida em 2014, a Sema afirma que não há registros conhecidos de cervos-do-pantanal mortos por caça.

Contudo, Alexandre Krob, do Instituto Curicaca, destaca que os cervos têm amplos territórios de movimentação, tanto dentro quanto fora das unidades de conservação, tornando difícil afirmar que os cervos abatidos na APA não tenham origem no refúgio.

O Ministério Público Estadual (MPE) reportou à ((o))eco o registro de oito flagrantes e denúncias, feitos por forças policiais, de caça e pesca ilegais nas duas unidades de conservação habitadas pelo cervo-do-pantanal, no período entre 2016 e 2023.

Diminuta, isolada e arredia

Pequeno em tamanho, isolado e esquivo, o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) foi catalogado pela Ciência em 1815 e é considerado o maior cervídeo existente na América Latina, podendo atingir até 130 kg quando adulto. Este cervo habita predominantemente regiões com banhados, pântanos e outras áreas úmidas e alagáveis.

A estimativa da população dessa espécie no Brasil é de quase 70 mil animais, sendo que 64% deles, ou seja, cerca de 44 mil cervos, encontram-se no Pantanal. Além do Pantanal, grupos desses cervos são encontrados em outras áreas do país, como na Estação Ecológica de Jataí (SP), no Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema e na Fazenda São Francisco (MS), além das reservas gaúchas. Na Argentina, a espécie habita pântanos no Delta do Rio Paraná e nos Esteros del Iberá.

Entretanto, os números dessa espécie estão em declínio no Brasil devido ao avanço do agronegócio, barramentos de rios, transformação de áreas alagadas por hidrelétricas, caça para obtenção de carne e couro, e outras pressões humanas. Nas áreas protegidas pelo Governo do Rio Grande do Sul, estima-se que haja apenas cerca de 30 cervos-do-pantanal.

Alexandre Krob, coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca, destaca a situação preocupante dessa população isolada e em declínio, ressaltando que a perda de cada animal aumenta significativamente o risco de extinção. O Instituto Curicaca lidera um programa estadual de conservação para o cervo-do-pantanal.

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O Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos (amarelo) e a Área de Proteção Ambiental do Banhado Grande (vermelho) são vizinhos do município de Porto Alegre (roxo). Mapa: Google Earth/Sema-RS/ObservaPoA/Mongabay

Ismael Brack, pós-doutorando em Ecologia na Universidade da Flórida, realiza pesquisas sobre os cervos-do-pantanal nas terras gaúchas há uma década. Utilizando drones e inteligência artificial, sua pesquisa busca quantificar e identificar os movimentos dos animais dentro e fora das reservas ecológicas.

Apesar de a APA do Banhado Grande e o Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos abrangerem uma área de quase 140 mil hectares, semelhante à área do município de São Paulo (SP), os cervos concentram-se em apenas 2,5 mil hectares do refúgio, onde a presença humana é mais restrita.

Brack expressa a preocupação de que a área protegida possa ser insuficiente para a manutenção da espécie a longo prazo, destacando os riscos de cruzamento em uma população reduzida e o consequente empobrecimento genético, além do aumento das ameaças, como a caça e conflitos com atividades humanas.

As crias de cervos-do-pantanal e outras espécies menores nas unidades de conservação estaduais enfrentam desafios, incluindo ataques de matilhas de cães domésticos abandonados e a exposição a agrotóxicos utilizados em lavouras, como as de arroz.

Um estudo conduzido por pesquisadores brasileiros e estrangeiros revelou que as ações humanas têm levado grupos de cervos no Brasil e na Argentina a adotarem hábitos mais noturnos. Brack destaca que a população gaúcha é a mais noturna conhecida da espécie, devido à intensa pressão antrópica.

Conservação conectada

Para mitigar as pressões enfrentadas pelos cervos-do-pantanal, entidades civis, pesquisadores e o governo estão colaborando para estabelecer conexões entre áreas preservadas e combater práticas ilícitas, como a caça e a presença descontrolada de cachorros nas unidades de conservação.

Ismael Brack, doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que a criação de um ambiente propício pode garantir a sobrevivência desses animais a longo prazo. Ele ressalta que, mesmo sendo apenas uma parte do ecossistema regional, a presença do cervo-do-pantanal é crucial para serviços ecossistêmicos, como fornecimento de água de qualidade para a produção agrícola e a Região Metropolitana.

Um acordo entre os ministérios públicos Federal e Estadual e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) impulsionou a formação de um corredor ecológico que conecta o Banhado dos Pachecos às várzeas do rio Gravataí, próximo ao canal do DNOS. Esse corredor visa ligar áreas propícias ao cervo-do-pantanal dentro e fora das reservas estaduais, incluindo a restauração de áreas degradadas pela atividade agrícola. A implementação do projeto depende de novas medidas dos governos federal e estadual.

Segundo o plano de manejo do refúgio de vida silvestre, datado de 2022, a proteção intensificada, recuperação e interligação de áreas úmidas regionais podem contribuir para expandir a distribuição e os números da população de cervos-do-pantanal na Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí.

Projeto do corredor ecológico (hachurado) para o cervo-do-pantanal no Rio Grande do Sul. Fonte: Plano de Manejo da APA do Banhado Grande
O veste-amarela compartilha áreas úmidas com outras espécies sul-americanas. Foto: Gmmv1980 / Creative Commo

Para enfrentar os ataques de cães domésticos e a predação de cervos, o governo estadual e parceiros realizam campanhas de vacinação, manejo e castração desses animais, além de conscientizar os moradores próximos ao refúgio de vida silvestre.

Essas ações não apenas protegem o cervo-do-pantanal, mas também mantêm ambientes propícios para mais de 60 espécies de mamíferos, répteis, anfíbios e aves que habitam as unidades de conservação, incluindo espécies notáveis como a veste-amarela (Xanthopsar flavus) e a noivinha-de-rabo-preto (Heteroxolmis dominicanus).

Ismael Brack enfatiza que a população de cervos pode persistir a longo prazo com os usos atuais do território, desde que haja um planejamento que considere a diversidade de usos, a redução de ameaças como caça e presença de cães, e a preservação e possível regeneração de áreas úmidas. Ele alerta sobre a necessidade de evitar a transformação dessas áreas para expansão agrícola, especialmente do cultivo de arroz.

Até o fechamento desta reportagem, as polícias Militar e Civil não forneceram informações sobre registros de caça de cervos-do-pantanal nas áreas protegidas gaúchas.

Fonte: ((o))eco

Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

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