Através da combinação de ecologia e matemática, uma nova abordagem para investigar o conceito de espécie-chave na natureza é proposta em uma pesquisa realizada pelo Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI), localizado no Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação (ICMC) da USP, em São Carlos. Os cientistas desenvolveram um índice denominado Gnorm, que avalia a centralidade em redes multicamadas originadas das interações entre organismos de diferentes espécies no ambiente natural, especificamente através do consumo de frutos e néctar por morcegos em regiões neotropicais.
Este indicador possibilita a identificação de potenciais espécies-chaves de morcegos que não seriam detectadas por métodos convencionais, contribuindo para compreender sua importância na polinização e reprodução de plantas silvestres e de valor comercial. Os resultados desta pesquisa foram divulgados em um artigo publicado na revista científica Methods in Ecology and Evolution, no último mês de dezembro, escrito pela pós-doutoranda Nastaran Lotfi, juntamente com o professor Francisco Aparecido Rodrigues, do CeMEAI e do ICMC, o professor Marco Mello e o graduando Henrique Suzuki Requejo, do Instituto de Biociências (IB) da USP.
Frequentemente, quando se menciona morcegos, comumente associamos esses animais ao mamífero de hábitos noturnos que pode transmitir doenças como a raiva, além de se alimentar do sangue de outros animais. Entretanto, é importante ressaltar que essas criaturas estabelecem interações vitais com as plantas, desempenhando um papel fundamental na sustentação da vida na Terra.
Os morcegos ocupam uma vasta gama de habitats em todo o mundo e desempenham um papel crucial na preservação do equilíbrio ambiental, uma vez que se alimentam de insetos, incluindo pragas agrícolas como gafanhotos e mariposas, além de serem eficazes polinizadores, contribuindo não apenas para a reprodução de flores silvestres, mas também de muitas plantas de interesse comercial.
Portanto, diversas espécies de plantas dependem da polinização realizada pelos morcegos para sua reprodução. Consequentemente, a ausência desses mamíferos pode resultar na extinção de plantas e outros organismos dentro da cadeia alimentar.
Com o intuito de aprofundar a compreensão dessas interações, os pesquisadores mapearam as relações entre morcegos e plantas na região neotropical, que se estende desde o México até a Argentina, utilizando o novo índice desenvolvido para identificar as espécies-chaves de morcegos nesse contexto.
Esses estudos são cruciais para orientar os esforços de conservação, pois revelam quais espécies devem ser alvo de maior proteção.
Como explica Rodrigues, “Se você tem uma espécie que se alimenta de muitos tipos de frutos e essa espécie se extinguir, pode causar um grande impacto na floresta, levando à diminuição ou até mesmo à extinção de árvores frutíferas. Esses morcegos se alimentam dos frutos e, posteriormente, dispersam as sementes”. Ele ressalta que o estudo não apenas destaca a importância dos morcegos na dispersão de frutos, mas também de néctar. “As espécies mais importantes na rede de interações são aquelas que precisam ser protegidas com maior urgência, pois são as que podem causar maior desequilíbrio no ambiente.”
Normalmente, esses estudos envolvem a coleta de dados em campo, utilizando uma variedade de equipamentos, como redes de captura, detectores ultrassônicos, câmeras fotográficas e de vídeo de alta definição, entre outros. Os pesquisadores observam as interações entre as espécies de morcegos e as plantas, construindo assim uma rede complexa que representa essas conexões mutualísticas.
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O grande avanço deste estudo foi o desenvolvimento de um novo índice para medir a centralidade em redes multicamadas, que representam sistemas complexos criados por diferentes tipos de interações entre organismos de espécies distintas. Neste caso específico, as interações de consumo de frutos e néctar por morcegos. Como destaca o professor Mello, “Na natureza, organismos de todas as espécies realizam múltiplos tipos de interações, formando uma verdadeira ‘teia da vida’, conforme Humboldt descreveu. Mais recentemente, na matemática, houve um aumento no desenvolvimento de ferramentas para estudar redes multicamadas, permitindo analisar dois ou mais tipos de interações simultaneamente. A partir de 2017, começamos a adaptar essas ferramentas para a ecologia”.
A centralidade, neste contexto, indica o quão importante um elemento do sistema é para sua estrutura e dinâmica como um todo. O desenvolvimento desse índice específico preencheu uma lacuna nas ferramentas disponíveis, possibilitando estudar a importância relativa de cada espécie em uma rede formada por diferentes tipos de interações ecológicas. Como ressalta o professor do IB, “A comunidade científica estava ansiosa por uma ferramenta como essa”.
O índice de centralidade, conhecido como Gnorm, emerge como uma ferramenta crucial na identificação de possíveis espécies-chave de morcegos, que poderiam passar despercebidas por abordagens tradicionais de análise de uma única camada. A pós-doutoranda Nastaran Lotfi, sob a orientação do professor Francisco Rodrigues e como primeira autora do estudo, destaca que o projeto, desde a pesquisa de campo até a publicação do artigo, demandou cerca de cinco anos de trabalho. Tudo teve início com um trabalho de conclusão de curso elaborado por Henrique Requejo, sob a orientação do professor Marco Mello no Instituto de Biociências (IB) da USP, onde o professor Rodrigues também participou da banca de defesa. Posteriormente, a pós-doutoranda Nastaran Lotfi assumiu o projeto, ampliando-o sob a orientação dos dois professores até a fase de publicação. Atualmente, Lotfi está conduzindo pesquisas na Universidade do Texas, nos Estados Unidos.
Para o professor Rodrigues, o algoritmo desenvolvido pelo grupo representa um avanço significativo para a matemática brasileira e tem o potencial de facilitar estudos futuros em áreas similares. Ele destaca que “Aprimoramos nosso estudo ao criar uma nova métrica para avaliar a importância de um morcego em duas interações alimentares simultâneas: a polinização, através do consumo de néctar das flores, e a dispersão de sementes, através do consumo de frutos das árvores”. Ele observa que anteriormente, a comunidade científica se concentrava apenas na análise das interações entre morcegos que se alimentavam exclusivamente de néctar ou de frutos, mas este estudo conseguiu integrar ambos os casos em uma análise única e abrangente.
O professor Mello destaca a importância desse tipo de colaboração interdisciplinar, apontando que “Definimos os problemas científicos com base no conhecimento da ecologia e, em seguida, procuramos maneiras de operacionalizar nossos estudos e testar previsões empíricas, utilizando conceitos matemáticos”. Ele ressalta que esse tipo de colaboração acadêmica transcende a ecologia e a matemática, ocorrendo em diversas outras áreas, sempre com a matemática como base analítica.
Após a publicação, o grupo de pesquisadores planeja aplicar o algoritmo desenvolvido para coletar uma variedade de informações adicionais, visando aprimorar a medida. O objetivo é investigar se a importância de uma espécie de morcego em uma rede multicamada está relacionada a suas características biológicas. O professor do IB pondera sobre questões como o tamanho do morcego e a importância de outros tipos de alimentos além de frutos e flores em sua dieta, buscando compreender os mecanismos e fatores que influenciam a centralidade de certos morcegos em relação a outros.
Fonte: Jornal da USP.
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