Vegetação inteligente e riqueza cultural: a Caatinga que é muito mais que seca e escassez

A Caatinga cobre cerca de 11% do território brasileiro, incluindo todos os Estados do Nordeste e o norte de Minas Gerais, e é o único bioma exclusivamente brasileiro, com aproximadamente 380 espécies endêmicas. No entanto, a região é vista como paisagem proscrita, renegada e frequentemente associada a rusticidade, escassez, seca e miserabilidade. Uma pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP investigou os significados negativos atribuídos a esse bioma e propõe abordagens pedagógicas para promover uma visão mais positiva do semiárido brasileiro.

Vegetação inteligente e riqueza cultural: a Caatinga que é muito mais que seca e escassez
Área de Caatinga no Rio Grande do Norte. Foto: Willianilson Pessoa

A partir de entrevistas, visitas ao sertão nordestino e acesso a bibliografia científica, jornais e obras literárias, a pesquisa encontrou indícios de que a desvalorização desse bioma pode estar associada a narrativas deturpadas difundidas pela mídia, obras literárias e ações governamentais. RI.CA.ATINGA: o semiárido clama pela valorização de sua riqueza é o título da tese defendida pela nordestina Andreia de Araújo. Há quase duas décadas morando em São Paulo, a arquiteta não esquece de suas raízes e deseja ver a riqueza do semiárido nordestino reconhecida.

A investigação começou por visitas às cidades nordestinas no Agreste Pernambucano – Bezerros, Caruaru e Gravatá – em busca de um entendimento da relação entre a região e as pessoas que nela viviam. A pesquisadora conversou com distintos atores da sociedade, usando uma abordagem fenomenológica em que “a construção de um olhar é feita a partir da imersão, com intenção aberta a todas as possibilidades, sem julgamento nem conceito prévio”. Entre os entrevistados, estavam o famoso xilogravurista J. Borges, um agente turístico e um casal de advogados. Alguns temas de pertencimento surgiram na conversa, como o laço emocional que eles tinham com a terra e com as pessoas, que as mantinham conectadas ao lugar. A valorização dos aspectos locais e relatos nostálgicos referenciavam imagens bucólicas na infância. “Os relatos encontrados contrariavam as narrativas que as mídias divulgavam sobre o povo nordestino”, diz.

Aquecimento global faz surgir primeira zona árida no Brasil

Em seguida, Andreia coletou depoimentos – de forma virtual, por conta da pandemia – em uma oficina montada por ela. O tema foi Visões das paisagens brasileiras, e atividade foi feita durante a Semana de Arquitetura e Urbanismo & Design. A proposta era investigar a percepção das pessoas (64% do Sudeste, 20% do Nordeste e 14% do Sul) sobre a Caatinga antes e depois de uma ação pedagógica que ela faria logo depois da oficina.

Inicialmente, foram apresentadas ao público imagens de diversas paisagens brasileiras, incluindo Amazônia, Pantanal, Mata Atlântica, Campos Sulinos e Cerrado. As pessoas foram questionadas a respeito de impressões que tinham sobre essas regiões e os adjetivos que associavam a cada paisagem. Em relação à Caatinga, as respostas foram predominantemente negativas, com palavras como “morte”, “secura”, “aridez”, “deserto”, “tristeza”, “povo sofrido” sendo frequentemente mencionadas. “As imagens verdejantes, mesmo sendo da Caatinga, foram menos apontadas, ou sequer foram selecionadas pelos participantes”, conta a pesquisadora.

Vegetação inteligente

Em outra etapa, a pesquisadora ministrou ao público aulas sobre questões ecológicas, culturais e sociais relacionadas à Caatinga, buscando dissociar a paisagem do estigma de sofrimento e ressequido e promover a construção de uma nova percepção sobre a região.

Vegetação inteligente e riqueza cultural: a Caatinga que é muito mais que seca e escassez
Vegetação inteligente: flor e frutificação da Ceiba Glaziovii (barriguda) – Foto: Fernanda Kalina da Silva Monteiro via Biota Neotropica
Vegetação que armazena água da chuva em seu caule para sua autonomia e reprodução – Foto: Fernanda Kalina da Silva Monteiro via Biota Neotropica
O umbuzeiro da Caatinga (xiropódio) é capaz de armazenar água suficiente para sobreviver longos períodos de estiagem – Foto: Nilton de Brito/Embrapa

Entre os assuntos abordados, a arquiteta explorou características geomorfológicas como a história da formação do relevo e a sagacidade da vegetação local ao desenvolver estratégias de armazenamento de água e adaptações que minimizam perdas hídricas durante a seca. Andreia explicou que as espécies são inteligentes e se adaptam às altas temperaturas e à falta de água através de mecanismos de economia hídrica e regulagem de excesso de luz. Foram citados alguns exemplos da família de cactáceas: o xique-xique, o mandacaru e a coroa-de-frade, que armazenam água em seus tecidos, e o umbuzeiro, em suas raízes tuberosas. Outras vegetações mantêm suas folhas em paralelo aos raios solares, de forma que uma menor superfície fique exposta ao Sol. As árvores são de pequeno porte e os arbustos, de troncos retorcidos e com espinhos. Durante a seca, eles perdem as folhas como se estivessem mortos, mas bastam os primeiros pingos de chuva para tudo voltar à vida, reforçou a pesquisadora na atividade.

Defensora de processos educacionais como ferramentas de transformação social, a arquiteta aplicou um questionário aos participantes após a aula sobre o potencial paisagístico da região. “As pessoas demonstraram surpresa e admiração pelas descobertas”, afirma. Alguns relatos refletiram sentimentos de comoção e lamento, evidenciando que a abordagem pedagógica revelou uma falta de percepção sobre a Caatinga, o que limitava a apreciação de sua rica paisagem. Um participante comentou que sua visão sobre a região era influenciada por meios de comunicação, que reforçavam desigualdades regionais. Outro destacou que a oficina ampliou sua perspectiva sobre as paisagens brasileiras, especialmente a da Caatinga, que antes via apenas como árida. “Agora sei que esse bioma tem muito mais vida, fauna e flora do que o pensamento popular sugere”, concluiu.

Estereótipo do sertão nordestino

A pesquisadora investigou também artigos científicos, jornais e literatura para entender a construção da imagem coletiva do sertão ao longo do tempo. Ela explica que o imaginário coletivo é um complexo ideoafetivo inconsciente, onde associações de ideias e emoções influenciam práticas individuais e coletivas de um grupo social em relação a um fenômeno específico.

Peça decorativa exposta na 20 FENEARTE. Foto: reprodução da tese “Ri.ca.atinga: o semiárido clama pela valorização de sua riqueza”, com autoria de Andreia Bezerra de Araújo

Andreia afirma que a mídia favorece uma imagem estereotipada do sertanejo. Em novelas, seriados e filmes, ele é retratado como um povo triste, sofredor e faminto, sempre com um visual rústico em tons de bege e terracota, similar aos retirantes descritos na literatura. Além disso, o sertanejo é muitas vezes associado à brutalidade, com tendências criminosas ou amorais – conforme estudos eugenistas antigos que ligavam o comportamento humano à morfologia corporal – e a fenômenos como o Cangaço.

Em análise de práticas de políticas públicas, Andreia constatou que os governantes do País quase sempre negligenciaram a região sertaneja, privilegiando outras áreas do Brasil, o que, em sua opinião, resultou em isolamento do Nordeste, sofrimento da população e domínio dos grandes latifundiários. Segundo a arquiteta, essa estética conveniente perpetuou as desigualdades na Caatinga e também foi reforçada por parte da literatura brasileira, como as obras de Euclides da Cunha, em Os Sertões, Graciliano Ramos, em Vidas Secas, e Raquel de Queiroz, em O Quinze, postura que foi combatida pelo cancioneiro popular Luiz Gonzaga, como faz questão de ressaltar.

Literatura: Os Sertões

Em trechos da obra de Euclides da Cunha Os Sertões, o escritor denomina o sertão como fronteira entre o moderno e o arcaico. “A descrição da paisagem passa a sensação de monotonia e imobilidade. O lugar é envolto por sentimentos de tristeza e morte. O sertanejo sofrido é retratado em sua peleja e determinação em seu cotidiano”, diz a pesquisadora.

… quadro tristonho de um horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem traço diversamente colorido, o pardo requeimado das caatingas […) localizadas em depressões, entre colinas nuas, envoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores […] o sertanejo, por mais escoteiro que siga, jamais deixa de levar uma pedra que calce as suas junturas vacilantes […] pequenas ondulações, todas da mesma foram e do mesmo modo dispostas, o viajante mais rápido tem a sensação de imobilidade. Patenteiam-se lhe, uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável. (Cunha, 1909, p. 14)

Outro autor analisado pela pesquisa foi Graciliano Ramos, que é reconhecido por sua representação literária marcada por angústia e desolação. “Seus personagens desesperançados vivem em um mundo desprovido de amor e alegria”, diz ela.

“Ultimamente vivia esmorecido, mofino, porque as desgraças eram muitas […] necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados […] Fabiano (personagem principal de Vidas Secas) espiava a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul, as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre […] os mandacarus e os alastrados vestiam a campina, espinho, só espinho. Precisava fugir daquela vegetação inimiga. (Ramos, 2013 p. 116, 117, 120)

No entanto, outros ícones importantes da cultura brasileira, como Luiz Gonzaga e Ariano Suassuna, enaltecem o Nordeste e a cultura regional. Em uma de suas canções, Luiz Gonzaga ilustra a representatividade das grandes feiras – que foram responsáveis pelo surgimento e crescimento de algumas importantes capitais regionais, como Feira de Santana, Caruaru, Garanhuns, Mossoró, entre outras, abastecidas pelas produções vindas dos brejos (áreas úmidas e pantanosas).

Luiz Gonzaga – Foto: Domínio público – Prefeitura de BH/Wikimedia Commons

Na canção A Feira de Caruaru,  Luiz Gonzaga dizia: “A Feira de Caruaru faz gosto a gente ver, de tudo que há no mundo nela tem pra vender… Tem massa de mandioca, batata assada, tem ovo cru, banana, laranja e manga, batata-doce, queijo e caju, cenoura, jabuticaba, guiné, galinha, pato e peru. Tem bode, carneiro e porco, se duvidar isso é cururu. Tem bode, carneiro e porco, se duvidar isso é cururu”.

Na canção Luar do Sertão, Luiz Gonzaga celebrou a noite sertaneja: “Não há, ó gente, oh! Não, luar como esse do sertão…Oh que saudade do luar da minha terra. Lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão. Este luar cá na cidade tão escuro não tem aquela saudade, do luar lá do sertão”.

A pesquisadora cita também o escritor modernista Mário de Andrade, que defendeu o semiárido nordestino em relatos de suas viagens ao Norte e Nordeste do Brasil, no final da década de 1920. Suas observações foram publicadas em crônicas, colunas e entrevistas no jornal Diário Nacional, onde atuava como redator, em janeiro de 1929.

“Vatapá, cavala em molho de coco, doces de comer pouco, deliciosos […] creme de camarão, casquinhas de caranguejos, o chouriço daqui é um doce, a canjica daqui inteiramente diversa da sulista … (Trecho das crônicas de Mário de Andrade, Diário Nacional, janeiro/1929).

“Chega um crono. Clarineta, violões, ganzá numa série deliciosa de samba, maxixes versos de origem pura […] coco […] No povo nordestino até o passo básico do Charleston, era usual antes da dança ianque aparecer […] a Rebeca está clara e enfim visível, mexidinho num ‘baiano’ (dança) monótono, mas admirável” … (Trecho das crônicas de Mário de Andrade, Diário Nacional/ janeiro/1929).

Depois, em seu retorno à capital paulista, Mário de Andrade concedeu entrevista ao Diário Nacional falando de suas impressões de viagem como os “três meses mais gostosos de minha vida...” (Diário Nacional, março/1929).

A arquiteta faz questão de enfatizar que não se trata de romantizar a dureza da vida no sertão, mas de viabilizar condições de vida mais pacíficas durante os períodos secos, desvinculando os sentimentos de sofrimento, sem que a aridez represente um fardo ou uma fonte de angústia. “Trata-se ainda de reivindicar o reconhecimento e valorização de toda riqueza que envolve a Caatinga e as paisagens semiáridas, tanto sob o ponto de vista ambiental, mas principalmente sob o aspecto cultural e social”, completa. O título RI.CA.ATINGA quer dizer que a caatinga é rica e viva, e seu povo, assim como sua vegetação, é resiliente e feliz.

O trabalho teve a orientação da professora Catharina Pinheiro Cordeiro dos Santos Lima, da FAU, e pode ser acessado neste link.

Fonte: Jornal da USP


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Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

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