Tudo o que comemos é transgênico, e isso não é um problema

Há trinta anos, em maio de 1994, o tomate Flavr Savr chegou às prateleiras dos Estados Unidos, tornando-se o primeiro organismo geneticamente modificado (GMO, na sigla em inglês) disponível ao público. Desde então, muitos outros transgênicos passaram a ser comercializados, e inúmeros estudos demonstraram sua segurança. Em 2013, por exemplo, um grupo de cientistas italianos analisou 1.783 artigos científicos sobre a segurança e o impacto ambiental dos GMOs, sem encontrar motivos de preocupação.

(Dani California/Unsplash/Reprodução)

Em 2016, as Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA convocaram 50 cientistas independentes para elaborar um relatório de 400 páginas. Analisando mais de mil estudos publicados ao longo de 29 anos, eles concluíram que “não há evidências de aumento na incidência de câncer, obesidade, doenças hepáticas, autismo, doença celíaca ou alergias alimentares”, além de não encontrarem “provas conclusivas de uma relação de causa e efeito entre culturas transgênicas e problemas ambientais”.

Isso é um alívio, já que é praticamente impossível evitá-los: 96,5% da soja e 88,4% do milho cultivados no Brasil são transgênicos, e grande parte da pecuária é alimentada com esses grãos. Se você come fora ou consome alimentos ultraprocessados, é provável que esteja ingerindo GMOs.

Nos Estados Unidos, a maioria da população consome transgênicos diariamente, e no Brasil, o segundo maior produtor mundial de GMOs, a realidade é parecida. Cerca de 20% das calorias dos brasileiros vêm de alimentos ultraprocessados, o que é preocupante.

Mesmo assim, 33% dos brasileiros acreditam que os GMOs são prejudiciais à saúde. Esse receio tem várias raízes compreensíveis.

Diga-me com quem andas…

Embora os transgênicos, por si só, sejam seguros, eles desempenham um papel central na agropecuária industrial em larga escala. As empresas de biotecnologia modificam geneticamente as sementes, inserindo genes que tornam as plantas resistentes a herbicidas e pesticidas. Sem essa modificação, os agrotóxicos que protegem as plantações acabariam por destruí-las também.

O problema é que as ervas-daninhas e os insetos tendem a desenvolver resistência aos agrotóxicos, o que leva ao uso de combinações mais potentes e variadas de substâncias químicas. Para acompanhar essa evolução, as plantas transgênicas precisam se tornar ainda mais resistentes.

Esse cenário traz inúmeros desafios, como a erosão do solo, a contaminação de rios e córregos por agrotóxicos e fertilizantes, a perda de biodiversidade e o esgotamento do solo causado pelo monocultivo em larga escala. Além disso, a expansão de áreas agrícolas ameaça biomas como o Cerrado e a Amazônia, e a economia brasileira torna-se dependente da exportação de produtos com baixo valor agregado, como a soja. Nos Estados Unidos, por exemplo, a limpeza de corpos d’água contaminados por fertilizantes custa cerca de US$ 2 bilhões anuais.

No entanto, os transgênicos em si não são responsáveis por esses problemas. Eles são simplesmente… comida, cuja segurança já foi amplamente comprovada.

Um exemplo claro de como essa tecnologia pode ser usada para o bem é o arroz dourado. Modificado para produzir betacaroteno, precursor da vitamina A, ele foi criado com o objetivo de combater a deficiência desse nutriente em regiões pobres. Iniciado pela Fundação Rockefeller em 1982, o projeto busca fornecer o arroz dourado gratuitamente a pequenos agricultores do Sudeste Asiático e da África, para reduzir a deficiência crônica de vitamina A, que afeta 15% das gestantes e 33% das crianças em idade pré-escolar, levando à cegueira e até à morte.

Ainda assim, o Greenpeace e outros grupos têm liderado uma campanha bem-sucedida contra o arroz dourado, chegando a invadir e destruir uma plantação experimental nas Filipinas em agosto de 2013. Nem mesmo uma carta assinada em 2016 por 107 laureados com o Prêmio Nobel conseguiu mudar a opinião dos ambientalistas.

Afinal, será que um arroz geneticamente modificado, criado nos EUA, é a solução ideal para um problema socioeconômico no Sudeste Asiático? Talvez não. Quem sabe, cenouras poderiam resolver a questão da deficiência de vitamina A. Mas essa discussão não gira em torno da segurança do produto, e sim de diversos fatores que influenciam a adoção de uma cultura agrícola por uma população.

Como disse Michael Pollan, em 2013: “O produto OGM ignora contextos – culturais, nutricionais, etc. Será que as pessoas vão comer arroz amarelo brilhante, que demora mais para cozinhar, em locais onde o combustível é escasso? Talvez. Mas elas já não comem arroz integral, que existe há muito tempo e é bem mais nutritivo.”

Em resumo, a edição genética é apenas uma ferramenta. Ela não serve apenas para tornar a soja ou o milho resistentes a agrotóxicos, mas pode ser uma aliada da agricultura sustentável se usada de forma ética, levando em consideração as particularidades culturais e alimentares de cada povo.

Essa reflexão é crucial, pois, nos próximos anos, com as mudanças climáticas impactando a biodiversidade, a temperatura e os padrões de chuva, pequenos e médios agricultores poderão se beneficiar de GMOs resistentes a pragas, estresse térmico ou hídrico. Embora essas modificações ainda sejam um desafio para a tecnologia atual, podem se tornar comuns no futuro.

Biotecnologia pré-histórica

Se a ideia de transgênicos ainda causa desconforto, é porque o preconceito com GMOs vai além das críticas ao agronegócio. Existe um medo mais profundo e difuso de que algo na biologia de um organismo geneticamente modificado seja fundamentalmente diferente de uma planta comum — algo que poderia ser prejudicial à nossa saúde.

Mas isso é um mito. Muito antes de termos tecnologia para manipular genes entre espécies, os agricultores pré-históricos já alteravam o genoma de plantas e animais domésticos, tornando-os mais dóceis, nutritivos, saborosos ou produtivos do que suas versões selvagens.

Um exemplo claro vem de 9 mil anos atrás, no atual Iraque. Naquela época, a cevada cultivada já era tão modificada em relação à gramínea selvagem que não conseguia mais se reproduzir sem intervenção humana. Para aumentar seu valor nutricional e facilitar a colheita, os agricultores selecionavam plantas com sementes mais robustas e que permanecessem presas à planta-mãe por mais tempo.

Essas características eram aprimoradas por meio de cruzamentos e seleção artificial: os agricultores escolhiam mudas ou animais com os traços desejados e os reproduziam, reforçando essas características ao longo das gerações.

Desde a Mesopotâmia até os dias de hoje, a humanidade tem explorado mutações genéticas e cruzamentos para seu benefício.

A laranja-Bahia, por exemplo, possui um umbigo característico porque, tecnicamente, são duas laranjas em uma só: um fruto menor cresce dentro de outro maior. Se cortá-la ao meio, verá os gomos da laranjinha dentro da laranja maior. Ela foi descoberta em 1820 no quintal de um mosteiro nos subúrbios de Salvador, e todos os pés de laranja-Bahia existentes hoje são clones.

Muito antes da engenharia genética moderna, agricultores pré-históricos já estavam, mesmo sem saber, manipulando o DNA de suas plantas e animais.

A laranja comum, por exemplo, é um híbrido entre a tangerina e o pomelo, uma fruta cítrica de casca grossa muito usada em refrigerantes na Argentina. Esse cruzamento é semelhante ao caso das mulas e burros, que são o resultado do acasalamento entre éguas e jumentos.

Às vezes, esses híbridos são mais sutis. Em 1910, pesquisadores do Jardim Botânico de Edimburgo cruzaram a batata selvagem Solanum demissum com a batata comum Solanum tuberosum e descobriram que o híbrido resultante era resistente ao Phytophthora infestans – o microorganismo que, no século XIX, devastou plantações de batata, causando a Grande Fome na Irlanda, que matou um milhão de pessoas.

Essa resistência se deve a um conjunto de onze genes presentes na S. demissum, ausentes na batata doméstica comum. Naquela época, ninguém sabia disso, já que a estrutura do DNA ainda era desconhecida e as descobertas de Mendel, o pai da genética, eram recentes.

Se fosse possível inserir diretamente esses genes da batata selvagem no genoma da batata cultivada, o resultado seria considerado um transgênico. No entanto, sem a tecnologia disponível na época, esses cruzamentos eram vistos apenas como seleção natural, não como biotecnologia – ainda que fossem.

Em resumo, se considerarmos “natural” tudo o que não envolve intervenção humana deliberada no genoma, então não há nada natural no que comemos hoje. Boa sorte procurando cogumelos na floresta!

Por exemplo, as bactérias que produzem insulina para tratamento de diabetes são organismos geneticamente modificados. Antes delas, o hormônio precisava ser extraído de pâncreas de porcos e vacas. Curiosamente, até nós, seres humanos, incorporamos genes de retrovírus antigos para formar a placenta – em um certo sentido, somos também transgênicos.

A única diferença nos GMOs modernos é que agora podemos adicionar, remover ou modificar apenas os trechos específicos de DNA que nos interessam, sem alterar o restante do organismo, o que torna o processo mais rápido e eficiente do que a seleção tradicional ao longo de gerações.

Voltando à questão inicial: tudo o que comemos hoje possui alguns (ou muitos) genes diferentes das plantas ou animais originais. E isso está perfeitamente bem.

Artigos: (1) artigo “An overview of the last 10 years of genetically engineered crop safety research”, por Alessandro Nicolia e outros; (2) livro Genetically engineered crops: experiences and prospects, das National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine; (3) consultoria Celeres, Idec; (4) Ibope Conecta (2016).

Fonte: Super


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