Troca de vegetação nativa por soja contribuiu com as enchentes no Rio Grande do Sul

Nos últimos dias, o Rio Grande do Sul foi assolado por inundações que já ceifaram a vida de mais de cem pessoas e deixaram milhares desabrigadas. A precipitação constante não dá trégua, e os relatórios meteorológicos e hidrológicos prenunciam um agravamento iminente da situação na região. As enchentes já são consideradas o mais devastador evento climático registrado na história do Rio Grande do Sul e um dos piores em território brasileiro.

Troca de vegetação nativa por soja contribuiu com as enchentes no Rio Grande do Sul
Plantações substituem vegetação nativa no Brasil inteiro. Reuters

A magnitude dessa tragédia, com suas perdas humanas e a devastação de comunidades inteiras, tem provocado debates acalorados sobre os elementos que contribuíram para essa catástrofe e aqueles que poderiam ter atenuado sua intensidade.

Especialistas consultados pela BBC News Brasil apontam um possível impacto da redução da cobertura vegetal nativa no estado como um desses elementos.

Dados fornecidos pela organização MapBiomas e divulgados pela BBC News Brasil revelam que, no período entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul testemunhou a devastação de cerca de 3,5 milhões de hectares de sua vegetação nativa. Esse montante equivale a 22% da cobertura vegetal original do estado, que incluía florestas, campos, áreas pantanosas e outras formas de vegetação autóctone.

Paralelamente a essa perda, houve um crescimento exponencial das áreas dedicadas à soja, à silvicultura e à urbanização.

Especialistas consultados pela BBC News Brasil argumentam que a redução da cobertura vegetal original influenciou significativamente as inundações que assolaram o estado. Isso porque a vegetação nativa:

  • Reduz a velocidade com que as enxurradas atingem os leitos dos rios;
  • Aumenta a capacidade de infiltração de água no solo, diminuindo assim o volume disponível para as inundações;
  • Protege o solo, reduzindo a quantidade de sedimentos que assoreiam os rios da região.

Em resposta a essa preocupação, a Secretaria do Meio Ambiente (Sema) do Rio Grande do Sul afirma que tem implementado diversas medidas para proteger e restaurar áreas de vegetação nativa no estado.

“Os programas de reflorestamento e a restauração de ecossistemas naturais são considerados cruciais e estão entre as principais prioridades do governo estadual”, ressaltou a nota enviada pela pasta.

Cidades e florestas ‘artificiais’

Pesquisadores que há décadas investigam a ocupação do solo no Rio Grande do Sul começaram a correlacionar a perda de vegetação nativa com os impactos das inundações. Entre eles está Eduardo Vélez, do MapBiomas, uma iniciativa que utiliza imagens de satélite para estudar as mudanças nos padrões de uso do solo em todo o Brasil.

Vélez explica que o levantamento teve como ponto de partida o ano de 1985, por ser o início da série histórica das imagens de satélite Landsat, necessárias para análises comparativas de longo prazo. O estudo comparou as coberturas vegetais ao longo dos anos para estimar a perda de vegetação nativa e o que a substituiu no Rio Grande do Sul.

Nova onda de chuvas já voltou a fazer aumentar o nível do Lago Guaíba, em Porto Alegre. SEBASTIAO MOREIRA/EPA-EFE/REX/SHUTTERSTOCK

A perda de vegetação nativa afetou todo o estado, com destaque para a bacia hidrográfica do Guaíba, onde cerca de um terço da vegetação foi perdida, totalizando 1,3 milhão de hectares. Vélez observa que, ao contrário da Amazônia, a perda no Rio Grande do Sul ocorreu principalmente nas formações campestres, adaptadas ao clima subtropical e compostas principalmente por gramíneas e arbustos de pequeno porte.

Essas formações campestres desempenham papéis cruciais na regulação hídrica e na conservação do solo. Entre 1985 e 2022, o estado perdeu 3,3 milhões de hectares desse tipo de vegetação, representando 32% do total em 1985. A expansão da agricultura, especialmente da soja, foi o principal destino das áreas desmatadas. A área de cultivo de soja cresceu 366%, passando de 1,3 milhão de hectares em 1985 para 6,3 milhões em 2022, superando a perda de vegetação nativa, pois avançou não apenas sobre áreas naturais, mas também sobre pastagens.

Troca de vegetação nativa por soja contribuiu com as enchentes no Rio Grande do Sul

Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em junho de 2023, o Rio Grande do Sul ocupava a terceira posição como maior produtor de soja no Brasil, ficando atrás apenas do Paraná e do Mato Grosso.

Além do crescimento na produção de soja, outra atividade que tem alterado significativamente a configuração do solo no estado é a silvicultura, que envolve o plantio de florestas novas ou o manejo de florestas nativas para exploração comercial. No Rio Grande do Sul, a silvicultura majoritária consiste no cultivo de espécies como eucalipto, pinus e outras destinadas à produção de madeira, lenha e celulose.

Segundo o MapBiomas, a área dedicada à silvicultura no estado cresceu de 79 mil hectares para 1,19 milhão de hectares, representando um aumento de 1.399%. Embora o Rio Grande do Sul ocupe a quinta posição em silvicultura no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda fica atrás de estados como Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Minas Gerais.

Além disso, as áreas urbanizadas no estado também registraram um crescimento significativo de 145% no período analisado, passando de 97 mil hectares em 1985 para 238.607 hectares em 2022. Esse crescimento acompanha o aumento populacional do estado, que segundo o IBGE, passou de 8,4 milhões de habitantes em 1985 para uma estimativa de 10,8 milhões em 2022.

Freio, reservatório e contenção

Valério Pillar, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador de uma rede de pesquisadores sobre os campos do Sul do país, enfatiza que a redução da área de vegetação nativa e sua substituição podem ter intensificado os impactos das inundações.

Ele aponta três razões para esse fenômeno. Primeiramente, a vegetação nativa atua como um “freio” para a água da chuva, especialmente nas margens de córregos e rios, diminuindo sua velocidade e força ao atingir as áreas mais baixas, o que reduz o risco de enchentes.

Troca de vegetação nativa por soja contribuiu com as enchentes no Rio Grande do Sul
Gravidade do estrago foi afetada por desmatamentos. AMANDA PEROBELLI/REUTERS.

Mesmo após transbordamentos, a vegetação nativa nas margens funciona como um freio para o escoamento da água, retardando sua progressão rio abaixo. Em segundo lugar, a vegetação nativa atua como um “dreno” para parte da água da chuva, mantendo o solo permeável e ajudando na infiltração da água, o que reduz o volume que flui diretamente para os rios.

Por fim, a vegetação nativa desempenha um papel crucial na mitigação da erosão do solo e do assoreamento dos rios. A remoção da vegetação nativa, especialmente dos campos nativos, expõe o solo à erosão causada pelas chuvas, resultando em um aumento significativo do sedimento transportado para os leitos dos rios, o que diminui sua profundidade e aumenta o risco de inundações.

Bruna Winck, agrônoma e doutora em Ciências do Solo pela UFRGS, complementa que, embora a soja cubra o solo e consuma água durante seu crescimento, ela não possui a mesma capacidade de retenção de água e solo durante as chuvas. O sistema de raízes da vegetação nativa é mais diversificado em sua capacidade de captar água em diferentes profundidades, enquanto na cultura da soja, há momentos em que o solo está menos protegido, como durante o preparo do solo e a fase inicial de crescimento das plantas. Mesmo com palha sobre o solo, isso favorece apenas a infiltração, não a absorção da água.

‘Boom’ nas commodities e mudanças legislativas

Os especialistas apontam diferentes causas para a redução da área de vegetação nativa e sua conversão em lavouras de soja no Rio Grande do Sul. Bruna Winck destaca o “boom” nos preços das commodities no início dos anos 2000, o que impulsionou a expansão das lavouras de soja, especialmente em regiões de solos férteis e bem drenados.

Por outro lado, Valério Pillar aponta para uma série de decisões políticas que contribuíram para essa diminuição da vegetação nativa. Ele menciona um decreto estadual de 2015 que facilitou o desmatamento em áreas de vegetação campestre, seguido pela consolidação dessas mudanças no Código Florestal do Estado em 2019. A Associação dos Servidores da Sema-RS e a Associação dos Funcionários da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul atribuem a perda da vegetação nativa a mudanças na legislação ambiental e a procedimentos das gestões estaduais e municipais que dificultaram a proteção ambiental.

FloreCast #31 – Combatendo FakeNews Climáticas | Florestal Brasil

Recentemente, o governo de Eduardo Leite foi alvo de críticas após uma reportagem da Folha de S. Paulo revelar que foram alteradas 480 normas ambientais desde que assumiu o comando do Estado em 2019. O governo defendeu as mudanças como uma atualização da legislação estadual para alinhá-la à legislação federal, visando modernização, proteção ambiental e desenvolvimento responsável.

A Secretaria do Meio Ambiente do RS negou que as mudanças no código ambiental estadual tenham impactos negativos e afirmou que a nova redação fortaleceu a capacidade de fiscalização dos órgãos ambientais, além de incentivar a proteção à vegetação nativa.

A Associação de Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS) não respondeu às questões enviadas pela BBC News Brasil sobre o assunto.

Futuro incerto

Embora haja um consenso entre Bruna Winck, Eduardo Vélez e Valério Pillar de que a redução da vegetação nativa não é a causa direta das inundações no Rio Grande do Sul, eles apontam para as mudanças climáticas, derivadas da atividade humana, como o principal fator por trás desses eventos extremos.

Winck ressalta que as previsões para o estado incluem aumento de extremos climáticos, como chuvas intensas, resultado das mudanças climáticas induzidas pelo aumento das emissões de CO₂ na atmosfera. Mesmo áreas com solos bem drenados e cobertos por vegetação nativa podem ser completamente saturadas em situações de precipitação extrema, levando ao transbordamento dos rios.

Ela destaca a importância da recomposição da vegetação nativa como uma forma de mitigar os efeitos das mudanças climáticas, já que essas áreas desempenham um papel crucial na captura de CO₂ e no armazenamento de carbono no solo.

A nota da associação de servidores da Sema também enfatiza a necessidade de recomposição da vegetação nativa no estado, destacando que o governo ainda não institucionalizou metas de recuperação previstas no Plano Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa.

Portanto, enquanto a redução da vegetação nativa não é diretamente responsável pelas inundações, a recomposição dessas áreas é crucial para mitigar os impactos das mudanças climáticas e proteger o estado contra eventos extremos no futuro.

O que diz o governo do Rio Grande do Sul

A Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Sema) destaca uma série de ações em andamento para proteção e recuperação da vegetação nativa no estado.

O Programa de Revitalização de Bacias Hidrográficas, criado em 2022, é mencionado como uma iniciativa que prevê a recuperação de aproximadamente 100 hectares de matas ciliares nas bacias dos rios dos Sinos e Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre. A Sema informa que o projeto está na fase final da parte técnica.

Além disso, a secretaria menciona o Programa Estadual de Recuperação da Vegetação Nativa (Proveg/RS), mas não fornece detalhes sobre o andamento das ações ou se as metas foram atingidas.

Um edital será lançado para promover a conservação em áreas privadas por meio do programa de pagamento por serviços ambientais.

A Sema destaca que o desmatamento no Rio Grande do Sul reduziu significativamente, com uma queda de 75% nos meses de setembro e outubro de 2023 em comparação com o mesmo período do ano anterior, conforme levantamento da ONG SOS Mata Atlântica com base em dados do MapBiomas. Essa redução coloca o estado entre os que mais diminuíram o desmatamento no bioma no país, demonstrando a eficácia das ações implementadas.

Apesar desses esforços, a secretaria reconhece que o estado enfrentou três eventos extremos em menos de oito meses e ressalta que mesmo áreas conservadas foram afetadas. Diante desse cenário, a Sema reafirma o compromisso de atuar para minimizar e compensar os impactos da ação humana sobre o meio ambiente, enfocando na adaptação e resiliência necessárias diante do atual contexto climático, e se compromete a responder de forma eficaz às demandas da sociedade.

Fonte: BBC News Brasil


Descubra mais sobre Florestal Brasil

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

View all posts by Arthur Brasil →

Comenta ai o que você achou disso...