Seca que afetou a Amazônia em 2023 está relacionada a mudanças climáticas

Em 2023, a Amazônia enfrentou uma das suas piores secas registradas. O declínio acentuado nos níveis dos rios impactou profundamente a vida de todos os habitantes da região, tornando difícil o deslocamento das populações ribeirinhas e o transporte de água, alimentos e outros itens essenciais. A seca veio acompanhada de intensas ondas de calor, sendo que no lago Tefé, a temperatura da água atingiu surpreendentes 39,1 graus Celsius no dia 28 de setembro, resultando na morte de peixes e de dezenas de botos e tucuxis.

Imagem acima: Comunidade ribeirinha às margens do rio Purus, no sul amazonense, durante a seca de 2023. Crédito: João Maciel de Araújo.

Para compreender esses eventos extremos, uma rede internacional de pesquisadores, incluindo acadêmicos e estudantes do Programa de Pós-graduação em Desastres Naturais, uma parceria entre o Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São José dos Campos, e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), foi mobilizada. Suas análises indicam que tanto o calor quanto a seca que assolaram a maior floresta tropical úmida do mundo já refletem o panorama das mudanças climáticas, em níveis tanto locais quanto globais. Os resultados dessa pesquisa foram publicados em abril na revista científica Scientific Reports.

Sob a liderança do climatologista peruano Jhan-Carlo Espinoza, do Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), a equipe de pesquisadores examinou dados hidrológicos do Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos, operado pela Agência Nacional de Águas e pelo Serviço Geológico do Brasil, bem como dados atmosféricos do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo (ECMWF) e registros de chuvas, utilizando informações pluviométricas de estações meteorológicas e observações via satélite.

Pior seca já registrada?

A Amazônia já testemunhou ao longo deste século outros períodos de seca extrema e prolongada, frequentemente vinculados ao fenômeno climático El Niño: em 2005, 2010, 2015 e 2016, e mais recentemente em 2022-2023. Esses eventos têm impactos multifacetados no bioma. Segundo determinados critérios, a seca ocorrida no ano passado foi considerada a mais grave da história.

Seca nos rios da Amazônia: compreenda as origens e a urgência de conservação

Um dos indicadores-chave é o nível do rio Amazonas e de seus afluentes, como o rio Negro, próximo à cidade de Manaus. Quando o nível da água no porto de Manaus cai abaixo de 15,80 metros, os especialistas consideram como uma seca severa. Em anos anteriores, como 2010, 1963, 1997 e 2005, os níveis das águas atingiram, respectivamente, 13,63 metros, 13,64 metros, 14,37 metros e 14,75 metros. No entanto, em 26 de agosto do ano passado, as águas em frente à capital manauara registraram apenas 12,70 metros, o menor índice desde o início dos registros históricos, em 1902.

“Em termos do nível dos rios, esta foi a seca mais severa já documentada”, afirma o pesquisador peruano. Ele observa que outros estudos em andamento podem determinar se esse episódio também foi o mais intenso em termos, por exemplo, da disponibilidade de água para a floresta ou de sua duração. “Na verdade, ainda não estou convencido de que a seca tenha chegado ao fim”, acrescenta.

O La Niña dá início à seca

A partir de novembro de 2022, uma redução significativa nas chuvas foi observada na porção sul e sudoeste da Amazônia, marcando um evento atípico, já que historicamente esse período é caracterizado pelo início da estação úmida na região. Essa diminuição das chuvas foi atribuída ao resfriamento das águas na região equatorial do oceano Pacífico, fenômeno conhecido como La Niña.

Espinoza explica que a ocorrência de anos consecutivos de La Niña geralmente resulta na diminuição da umidade no sul da América do Sul, especialmente na faixa entre o sul do Brasil, norte da Argentina e Paraguai, levando a longos períodos de estiagem. “No entanto, nos últimos anos, o La Niña foi tão intenso que a diminuição dos níveis de precipitação se estendeu até a Amazônia boliviana, próxima à fronteira com os estados de Rondônia e Acre, e os Andes tropicais”, observa o climatologista, que é o autor principal do artigo. Entre os coautores está José Antônio Marengo, pesquisador titular e coordenador geral de pesquisa do Cemaden.

Posteriormente, o déficit nas chuvas nessas regiões se intensificou com a chegada do verão austral, entre dezembro de 2022 e fevereiro de 2023. A umidade que normalmente atinge a bacia amazônica é trazida por ventos que sopram do Atlântico Tropical Norte em direção ao continente. “Esse vapor de água gera chuva sobre a floresta”, explica Espinoza.

Inicialmente, a vegetação e o solo absorvem a água, seguido pelo processo de evapotranspiração, onde parte da chuva evapora dos solos e as plantas transpiram. Essas ações devolvem uma grande parte da umidade inicial à atmosfera, promovendo mais precipitação sobre a mata. “Essa interação resulta em um ciclo perene muito eficiente de reciclagem de água”, destaca o climatologista.

Entretanto, entre dezembro de 2022 e fevereiro de 2023, a umidade proveniente do Atlântico Tropical Norte ficou concentrada no norte da América do Sul, entre a Colômbia e a Guiana. “Era esperado que ela se deslocasse até a Amazônia boliviana, o que não ocorreu”, acrescenta o pesquisador. A combinação desses fatores impulsionou a seca, resultando em uma área maior da Amazônia afetada e uma duração prolongada do fenômeno.

Entra em cena o El Niño

Entre abril e maio de 2023, a situação na Amazônia se agravou com a chegada do El Niño. Esse fenômeno é caracterizado pelo aquecimento acima da média das águas do Pacífico, próximo à linha do equador. Isso ocorre quando os ventos que normalmente sopram de leste para oeste na região tropical perdem intensidade, não conseguindo empurrar as águas mais quentes em direção à Ásia e à Oceania. Essa água aquecida permanece estagnada, evapora mais intensamente e favorece o aumento de chuvas nessa região.

As águas aquecidas tendem a permanecer na superfície do oceano por serem menos densas do que as águas frias, que se acumulam nas profundezas. Em condições normais, sem a influência do El Niño, os ventos transportam as águas quentes e superficiais do Pacífico Tropical das Américas para a Oceania. Isso permite que as águas frias, mais profundas, subam e ocupem o seu lugar, em um processo conhecido como ressurgência, que ocorre geralmente próximo à costa equatorial da América do Sul.

No Brasil, o El Niño resulta em aumento das chuvas no Sul e em seca no Norte. Ao longo de 2023, à medida que o El Niño se intensificava, a região central e norte da Amazônia experimentou condições mais secas e quentes do que o normal. “Com menos chuvas, os rios tributários provenientes do sul da bacia, que já estavam abaixo da cota mínima histórica para aquela época do ano, tiveram mais dificuldade para se recuperar”, explica Espinoza.

Os efeitos da seca foram perceptíveis em todos os grandes rios da região, como o Negro, Solimões, Purus, Juruá e Madeira. O nível do rio Negro, por exemplo, chegou a baixar 20 centímetros por dia entre agosto e início de setembro, de acordo com o Serviço Geológico do Brasil. Embora esse seja o dobro do registrado em 2022, é menos do que o observado durante as grandes secas amazônicas de 2005 e 2010.

O aquecimento global também intensificou os impactos da seca, aumentando o calor e reduzindo a disponibilidade de água para a manutenção da floresta e de seu ecossistema. Além disso, o desmatamento e a degradação florestal contribuem para esse cenário. “Como a floresta desempenha um papel crucial na formação de nuvens de chuva por meio da evapotranspiração das árvores, a diminuição da cobertura florestal e a deterioração da saúde da floresta podem resultar em menos precipitações”, observa João Vitor Marinho Ribeiro, estudante de doutorado no Programa de Pós-graduação em Desastres Naturais e um dos autores do artigo na Scientific Reports.

A proximidade do ponto de não retorno

A intensidade dos fenômenos El Niño e La Niña observada em 2023 não pode ser atribuída apenas a variações naturais. Os autores do artigo discutem outros fatores que podem ter contribuído para essa intensificação, sugerindo dois principais: o aquecimento global e o desmatamento. A Amazônia desempenha um papel crucial no fornecimento de umidade, através dos chamados “rios voadores”, para outras regiões do país e da América Latina, agindo como um regulador climático regional. “À medida que a floresta é desmatada, ela perde progressivamente sua capacidade de absorver mais carbono da atmosfera, o que agrava o aquecimento global, e de fornecer vapor de água para a formação de chuva sobre si mesma e outras regiões”, comenta Espinoza.

“O artigo não faz previsões de cenários futuros, mas, infelizmente, se esses dois fatores não forem controlados, há uma tendência de que continuem a crescer com o tempo. Muitas publicações que analisam cenários futuros sugerem que condições mais secas e quentes, por volta de 2050, se tornem comuns na Amazônia”, diz.

Tudo isso ocorre em um momento em que a Amazônia já perdeu cerca de 18% de sua cobertura florestal e está se aproximando do que os cientistas chamam de “ponto de não retorno”, que indica o colapso parcial ou total da floresta e o aceleramento do aquecimento global.

Se isso acontecer, uma parte considerável da floresta pode se transformar em uma mata degradada, com menos espécies, ou até mesmo em cerrado, com poucas árvores e mais gramíneas, em um processo chamado de savanização da Amazônia. “O aumento das condições secas e quentes levará a floresta a um ponto crítico, onde começará o processo de savanização. Isso terá implicações sérias. A floresta amazônica desempenha funções vitais na umidificação da atmosfera e na regulação da circulação atmosférica. Sem ela, o clima mudará, o que resultará em piores secas, em um ciclo de retroalimentação”, explica.

João Vitor Marinho Ribeiro, aluno do Programa de Pós-graduação em Desastres Naturais, interpreta os resultados da pesquisa sob a perspectiva de estudioso dos desastres. “Em um evento de seca dessa magnitude, é importante questionar como determinar quando os impactos começaram a ocorrer e quando poderão cessar. Afinal, a ausência de notícias sobre esses efeitos não garante que tenham terminado”, avalia. “Os impactos são diversos: econômicos, sociais, ambientais… E mesmo dentro do aspecto ambiental, afetam a fauna, a flora e as propriedades físicas do ambiente. É difícil quantificar esses impactos devido à escala do evento”, pondera.

Ribeiro observa que as mudanças climáticas estão se mostrando mais intensas e ocorrendo mais rapidamente do que sugeriam alguns estudos anteriores. “É crucial discutir estratégias de mitigação das mudanças climáticas e combate ao efeito estufa. Mas, dado que eventos como essas secas podem se tornar mais frequentes, é urgente investir em formas de adaptar nossa sociedade a esse novo cenário. Infelizmente, fala-se pouco sobre essa questão da adaptação”, conclui.

Fonte: Jornal da Unesp


Descubra mais sobre Florestal Brasil

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

View all posts by Arthur Brasil →

Comenta ai o que você achou disso...