“Precisamos reconhecer que o fogo está sendo usado como ferramenta de desmatamento, não é mais apenas um reflexo de anos secos”, diz ecóloga da Unesp

O ano de 2024 nem acabou, mas já entrou para a história do Brasil por ter registrado alguns tristes recordes. Entre janeiro e setembro, incêndios em diversos estados, São Paulo inclusive, devastaram uma área estimada em 22,38 milhões de hectares. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), deste 2010 não se viam queimadas destas proporções em território nacional. As últimas duas semanas de agosto escancararam a escala da destruição quando a fumaça proveniente das queimadas cobriu o território nacional, espalhando-se desde a Amazônia até o Rio Grande do Sul. Em setembro, outro dado alarmante: ao longo de 48 horas, o Brasil sozinho concentrou 71,9% das queimadas de toda a América do Sul.

Imagem acima: Brigadistas do Instituto Brasília Ambiental e Bombeiros do Distrito Federal combatem incêndio em área de cerrado próxima ao aeroporto de Brasília em 24 de agosto. Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Segundo dados do MapBiomas, em comparação com o ano passado, 2024 apresentou um salto de 150% de área queimada. Os locais mais afetados foram as regiões de mata nativa, especialmente na Amazônia e no Cerrado. Apesar disso, para surpresa de pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais da Unesp em parceria com o Cemaden, as áreas de uso agropecuário também não passaram incólumes: 4,6 milhões de hectares delas foram afetados pelo fogo entre janeiro e setembro, sendo a maioria regiões de pastagens plantadas. “Era inimaginável pensar que veríamos áreas agrícolas queimando, porque isso implica prejuízos imensos para a agricultura”, diz Klécia Gili Massi, pesquisadora do PPG e docente do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp (ICT-Unesp), campus São José dos Campos. “Temos uma bancada ruralista muito forte no Congresso e no Senado, que tenta flexibilizar leis de proteção ambiental para atender à demanda dos setores agrícolas. Esses setores deveriam ser os primeiros a defender pautas de proteção ambiental”, diz.

É verdade que houve uma seca intensa contribuindo para tornar ideais as condições para que o fogo se espalhasse. Na verdade,  segundo o Cemaden, a seca que se abateu sobre o país foi a mais intensa desde 1950. Massi, porém, credita a magnitude das queimadas observadas este ano principalmente às ações do homem, especialmente aquelas ligadas às atividades de grilagem.

Em entrevista ao Jornal da Unesp, Klécia Massi, que pesquisa a ocorrência de incêndios na Amazônia, Cerrado, Pantanal e Mata Atlântica, analisa as particularidades das fortíssimas queimadas que vimos em 2024. Dentre elas, o fato de que o fogo também foi empregado como ferramenta de pressão política.

Apesar de se mostrar otimista quanto aos potenciais benefícios a serem colhidos pelas políticas públicas que vêm sendo recentemente aprovadas, como a de Manejo Integrado do Fogo, Massi vê com preocupação o estado de degradação dos ecossistemas nativos e a falta de colaboração entre os diferentes níveis de governo. Tais desafios devem ser superados se queremos pensar em um futuro com menos queimadas. “Se não houver uma culpabilização e se não encontrarmos respostas para esses eventos, isso evidentemente vai voltar a acontecer. E em escala cada vez maior.”

Devido à sua atividade como pesquisadora, você monitora as queimadas no país há algum tempo.  Acabamos de passar por um período de incêndios sem precedentes na história do Brasil.  Você se surpreendeu com o que aconteceu?

Klécia Massi: Eu sou credenciada no Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais da Unesp. Por muito tempo, havia a ideia de que incêndios não deveriam ser considerados desastres no Brasil, como acontece em locais como a Califórnia, Portugal ou Canadá. Este ano, essa percepção mudou. Nós saímos de uma situação de uma média esperada de incêndios, que eram ilegais, mas faziam parte da lógica do desmatamento, e chegamos a novos patamares que ainda não fomos capazes de compreender completamente – e existem diversos fatores que influenciaram o que presenciamos.

Um dos fatores foi a seca extrema. Estamos enfrentando secas históricas, que intensificam as áreas queimadas, como vemos no Pantanal e na Amazônia. Outro ponto que nos pegou de surpresa foi o cenário político. Os incêndios que aconteceram em 2020, principalmente no Pantanal, tiveram desdobramentos e respostas que, de certa forma, já eram esperados por conta da conjuntura política daquele momento. Um exemplo foi o Dia do Fogo em 2019. Porém, essa não é a realidade atual, pelo menos não a do atual Governo Federal. Com um Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima ativo agora, e os órgãos ambientais funcionando, não esperávamos que isso se repetisse.

Também nos surpreendemos com as queimadas que atingiram áreas agrícolas. Que se abram novas áreas de ecossistemas nativos para darem lugar a áreas agrícolas é algo ilegal, mas esperado. Agora, que as áreas agrícolas também estejam queimando, é algo inimaginável. Se aquele lugar queima, queima-se o principal ativo da produção. São prejuízos imensos para a agricultura. Então, como é possível que isso tenha acontecido? Na mesma linha, vimos várias áreas urbanas passando por queimadas, fosse porque o incêndio tinha início na região ou porque começou em uma área agrícola e avançou em direção a áreas urbanas. Vimos isso na região de Ribeirão Preto, com as estradas que tiveram de ser fechadas. Essa combinação de fatores nos surpreendeu.

É possível identificar quais foram as principais causas desses incêndios? Ação humana, mudança climática, causas naturais?

Klécia Massi: Não podemos ter 100% de certeza, mas há uma alta probabilidade de que as queimadas tenham sido causadas por ação humana. Tudo isso vai ter de ser investigado e espero que o processo tenha outro destino e encontremos os culpados, diferente do que aconteceu com o Dia do Fogo de 2019, cujo processo foi arquivado.

Acredito que existam duas razões principais para essas queimadas tão anormais: o primeiro é o uso do fogo em áreas públicas griladas para facilitar a ocupação dessas terras. Embora o Governo Federal atual tenha políticas ambientais mais firmes, o Congresso ainda é muito conservador, com uma bancada ruralista muito forte que tem tentado repetidamente flexibilizar leis para atender à demanda dos setores agrícolas. Paradoxalmente, esses são os primeiros setores a serem prejudicados pelas queimadas, então a agricultura brasileira deveria ser a primeira a defender pautas de proteção ambiental.

O segundo fator é o uso político do fogo, em uma tentativa de desestabilizar o governo, criando caos. Eu diria que a chance de os incêndios terem surgido por origem natural é mínima. Até porque temos de entender que o fogo de origem natural é desencadeado por um raio, e onde estava chovendo no Brasil naquela época? Em lugar nenhum. Fora isso, temos estudos que mostram que o fogo iniciado por raios geralmente se extingue rapidamente. Assim, é provável que os incêndios tenham origem humana, principalmente associados a práticas de desmatamento e interesses políticos.

Segundo o Inpe, no primeiro semestre deste ano o desmatamento na Amazônia caiu 38% e no Cerrado 15%. Por que foi mais fácil derrubar o desmatamento do que combater as queimadas?

Klécia Massi: O desmatamento é mais fácil de monitorar porque é visível e chama a atenção. Por exemplo, quando o satélite do Inpe passa e vê que uma área de vegetação sumiu, ele gera um alerta imediato; na terra, mesmo vizinhos ou pessoas que estão passando pela proximidade, se visualizam uma área sendo desmatada, eles frequentemente denunciam. Já as queimadas são difíceis de rastrear, porque o início do fogo é algo muito rápido. Sem flagrante, não é possível identificar quem iniciou o fogo, e isso dificulta a responsabilização. Então, a queimada acaba fazendo o papel de um desmatamento disfarçado, porque não é possível saber se aquele fogo foi criminoso ou acidental.

Esse potencial do fogo como ferramenta de desmatamento é algo que conseguimos observar mesmo no estado de São Paulo, na Mata Atlântica. Eu orientei o trabalho de uma antiga estudante de doutorado que monitorou áreas queimadas de Mata Atlântica ao longo de três anos. O que encontramos é que muitas dessas regiões, depois do incêndio, acabavam sendo utilizadas para a agricultura. E isso é algo que está acontecendo aqui, embaixo do nosso nariz. Existem dados que mostram que a maior parte das queimadas tem início à noite. Por que será?

Os dados de desmatamento caíram, o que é positivo porque significa que os órgãos ambientais voltaram a funcionar. Mas precisamos reconhecer que o fogo está sendo usado como uma ferramenta de desmatamento. Não é mais apenas um reflexo de anos secos; há questões mais complexas por trás disso que exigem novas formas de combate.

Como é possível combater esses incêndios e evitar que eventos como os que vimos este ano se repitam?

Klécia Massi: É super possível evitar que eventos como os deste ano voltem a acontecer, mas isso exige uma abordagem integrada entre os diferentes níveis de governo. A defesa civil e o corpo de bombeiros, que atuam no nível municipal e estadual, por exemplo, precisam estar equipados, o que muitas vezes não ocorre. Para falar de uma realidade que eu conheço, aqui do Vale do Paraíba, muitas organizações de defesa civil não têm recursos básicos, como veículos ou pessoal suficiente. Eu estou trabalhando em uma pesquisa que olha para o momento em que as defesas civis começam a agir quando o tema é fogo. As ações, basicamente, são treinamentos durante a operação estiagem e na operação corta-fogo, que é mais ou menos no mesmo período. As defesas civis estão agindo apenas no período em que acontece o fogo e isso é algo absurdo. A gente deve trabalhar com o fogo o ano inteiro.

Uma estratégia bastante eficaz é o Manejo Integrado do Fogo (MIF), que acabou de se tornar uma política nacional. Ela diferencia o uso tradicional do fogo, as queimadas ilegais e as prescritas, que são queimadas feitas para prevenir grandes incêndios catastróficos, além de prever a criação de vários comitês e comissões com a participação da sociedade civil e das diferentes instâncias governamentais. Essa política formaliza os instrumentos e os mecanismos necessários para redução de incêndios. Há exemplos de parques nacionais que, com o MIF, sofreram menos com incêndios catastróficos. A abordagem do MIF é maravilhosa, complexa, com ações o ano inteiro e envolvendo todos os atores imagináveis. Isso é algo muito recente. Acredito que ainda vai levar um tempo para que essa lei seja efetivada mas, para isso, os estados têm de começar a ser parceiros do Governo Federal. Existem maneiras de evitar novos eventos como o deste ano. Não é simples, mas é possível.

Como você vê os incêndios e queimadas no futuro? Será que o quadro deste ano se mostrará recorrente?

Klécia Massi: Infelizmente, não tenho uma resposta otimista. A verdade é que, em um cenário de mudanças climáticas, fazer previsões é complicado, já que eventos extremos podem ocorrer tanto na forma de secas quanto de chuvas intensas.  Agora, uma vez que se viu ser possível transformar o país em um caos, se não houver uma culpabilização e se não encontrarmos respostas para esses eventos, isso evidentemente vai voltar a acontecer e em uma escala cada vez maior.

Do ponto de vista ambiental, temos a Mata Atlântica, a Amazônia e outros biomas cada vez mais fragmentados. Com a Amazônia se degradando, fragmentos menores de floresta ficam mais secos e propensos a incêndios, especialmente com a entrada de espécies invasoras de gramíneas. Esse é um ciclo de degradação difícil de reverter e que estamos vendo acontecer em praticamente todos os biomas do Brasil. Mesmo com essa realidade, temos de acreditar na efetividade das políticas públicas. Por exemplo, a política de recuperação de pastagens degradadas do atual governo é crucial. Ela permite que áreas degradadas sejam reutilizadas, seja para pastagem, agricultura ou reflorestamento, reduzindo a pressão por novas áreas no Cerrado e na Amazônia. A recuperação de áreas degradadas no Brasil é fundamental para caminharmos para uma diminuição de degradação dos ecossistemas nativos.

Eu acho que o Governo Federal precisa ser hábil o suficiente para conversar com diversos atores, não apenas os ambientais, mas de outros ministérios, como o de Agricultura e Pecuária e o de Planejamento, para tentar realizar uma ação coordenada.


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Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

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