Por que não é correto comparar os incêndios na Amazônia aos que ocorrem na Austrália

Pense na fumaça que sai de um vulcão. Agora, imagine compará-la à fumaça que sai do escapamento de um carro. 
Fogo na Amazônia
Números que comparam incêndios nos
dois locais têm base diferente e não poderiam ser usados para
comparação; na imagem, fogo na Amazônia
 
“São
coisas completamente diferentes”, diz Erika Berenguer, pesquisadora
brasileira das universidades britânicas de Oxford e de Lancaster. Seria
erro semelhante comparar os incêndios na Amazônia brasileira às
queimadas atuais na Austrália, aponta ela.
“Não é porque é fogo
que é igual. Não é uma comparação válida”, afirma Berenguer, que estuda
os impactos do fogo na Amazônia. “Por parte de pessoas que têm
informações, é uma comparação desonesta.”
A analogia com a fumaça
vulcânica e a de um carro não é ao acaso. É porque a diferença essencial
entre os dois tipos de fogo é a mesma daquela entre esses dois tipos de
fumaça: um é, em sua maior parte natural; o outro, causado
principalmente por ação humana.
Na opinião do biólogo Alexander Lees, professor da Manchester
Metropolitan University, “há mais diferenças que semelhanças” entre os
dois eventos. A influência do aquecimento global sobre a intensidade das
situações é uma das poucas semelhanças possíveis. “Os fogos na
Austrália, na Sibéria e no Brasil vão ficar piores com o aquecimento do
planeta”, afirma.
A BBC News Brasil ouviu especialistas que explicam em detalhes por que a comparação não é cabível.

Causas

É principalmente devido a causas tão distintas que não se pode comparar os fogos na Amazônia e na Austrália.
Jos
Barlow, pesquisador da Universidade de Lancaster e da Universidade
Federal de Lavras, explica que a flora australiana evoluiu com o fogo,
que ocorre naturalmente em regiões do país. 
incêndios na Austrália
Os incêndios na Austrália deixaram milhões de hectares arrasados por chamas Foto: AFP
“É um ecossistema que
queima de tempos em tempos”. Ou seja, as queimadas acontecem em sua
maior parte de forma natural, pela incidência de raios. Também há uma
minoria de casos de incêndios causados de forma proposital.
“Os
incêndios em diversos ecossistemas australianos, como os outbacks,
ocorrem naturalmente. Faz parte ter fogo com uma certa frequência, como
nas florestas costeiras da Califórnia, nas savanas na África ou no
cerrado brasileiro. Tem um regime de fogo”, afirma Berenguer. 
Mas isso, diz ela, está sendo exacerbado pelo efeitos das mudanças
climáticas. “As temperaturas já estão mais altas e o período de secas
mais prolongado na Austrália, o que favorece a propagação do fogo.”
Também
houve influência do Dipolo do Oceano Índico (conhecido como El Niño do
Índico), que se refere à diferença nas temperaturas da superfície do mar
em regiões opostas do oceano. No ano passado, foi “extraordinariamente
forte”, segundo Lees. 
Isso significa que a região a oeste do
Índico ficou mais quente que o normal e, a leste, mais fria, causando
enchentes na África e na Indonésia e condições secas na Austrália.
“Foi
mais forte que o normal, e isso é um efeito das mudanças climáticas.
Está empurrando a Terra para seus limites”, afirma Lees.
Já a
floresta amazônica, diz ele, “sem interferência, nunca queima
naturalmente”. Berenguer explica que a floresta é úmida —como diz o nome
em inglês, “rainforest”, ou “floresta de chuvas”. “O fogo não ocorre
naturalmente nesse ambiente ultraúmido que é a Amazônia. Precisa ser
iniciado por alguém”, afirma. 
Então, o fogo no Brasil teria sido iniciado em sua maior parte como
parte do processo de desmatamento, quando a vegetação é derrubada,
colocada ao sol para secar e depois queimada para limpar a área. As
árvores viram cinzas.

Tamanho e período

A comparação
entre a dimensão das queimadas nos dois países — feita anteriormente
pela BBC News, outros veículos e usuários de redes sociais — tampouco
poderia ter sido feita. Isso porque não só são incêndios com causas
bastante diferentes, como também diferentes períodos e metodologias para
a medição das dimensões.
Segundo dados do programa Queimadas, do
Inpe (Instituto Nacional de Programas Espaciais), entre janeiro e
novembro de 2019, uma área de 70.698 km² foi queimada na Amazônia
brasileira. Isso equivale a 7 milhões de hectares. O Inpe usa dados de
satélite, e ainda está processando o mês de dezembro.
Já na
Austrália, de acordo com o jornal The Guardian, total queimado desde o
início da temporada, em junho de 2019, até esta quarta-feira (8) é de
10,7 milhões de hectares. O jornal está compilando dados comunicados por
cada Estado da Austrália. 
Jesse Collins organizando doações em um centro de evacuação na Austrália enquanto fala sobre o quão difícil é buscar água
Muitos residentes da Austrália foram para abrigos temporários depois de deixar suas casas Foto: REUTERS
 Então, um dado é referente a quase um
ano inteiro no Brasil; o outro, à temporada de incêndios na Austrália
que começou em junho. E comparar o que aconteceu nos dois países no
mesmo ano não seria justo, segundo Barlow, porque o Brasil teve um ano
“normal” em relação à temperatura, “até bastante úmido”, enquanto a
Austrália teve “condições climáticas excepcionais” neste ano.
Para ele, seria menos injusto comparar o fogo na Amazônia em 2015 com
a atual temporada de queimadas da Austrália. Em 2015, o fenômeno El
Niño causou secas extremas na Amazônia, dando condições para que
incêndios prosperassem.
O gráfico com comparação numérica
incorreta entre os incêndios nos dois países foi usado pelo ministro do
Meio Ambiente, Ricardo Salles, para acusar jornalistas e ONGs de
“seletividade” ao abordar os dois temas. A imagem, feita a partir de
dados divulgados pela BBC News, mostrava o Brasil com uma área muito
menor de incêndios do que a realidade. 
A BBC News havia publicado
na semana passada um gráfico com dados incorretos não retirados do INPE
e avisou o veículo autor do gráfico utilizado por Salles sobre o erro. O
gráfico foi retirado do ar pela BBC News.

Ver imagem no Twitter
O programa Queimadas, do Inpe, dá uma estimativa “ampla e visão geral
das áreas queimadas nos biomas brasileiros”. Desenvolvido em parceria
com o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais – LASA, do
Departamento de Meteorologia da UFRJ, está em “constante atualização e
validação”.
Além de datas e metodologias distintas, outros
aspectos que esses dados não podem traduzir complicam a comparação entre
o fogo na Austrália e no Brasil.
Especialistas dizem que os
números do Inpe subestimam a área queimada na região amazônica porque
“os satélites têm dificuldade de detectar fogo debaixo da copa das
árvores”, segundo Berenguer. Os satélites detectam melhor fogo em áreas
abertas ou em biomas como o cerrado ou a savana. 
“A extensão da
queimada na Austrália é mais clara”, diz Barlow. “Mas no Brasil, no
momento, ainda não sabemos quanto queimou em 2019.”
Isso porque os dados do Inpe não fazem distinção entre os tipos de
fogo na região amazônica: fogos após desmatamento (quando a vegetação é
derrubada, deixada para secar ao sol e depois queimada), fogos em áreas
de pastagens (que foram desmatadas em um período anterior, utilizadas
para agricultura e cuja queima pode servir para eliminar ervas daninhas,
por exemplo), e fogos florestais (quando o incêndio é descontrolado e
foge dos limites de quem faz a queima, podendo ser acidental ou
intencional). 
Essas diferenças entre tipos de incêndio está
explicada no estudo Clarifying Amazonia’s Burning Crisis (Esclarecendo a
Crise dos Incêndios na Amazônia, em tradução livre), publicado na
revista científica Global Change Biology em novembro do ano passado, de
autoria de Barlow, Berenguer, os pesquisadores Rachel Carmenta e Filipe
França, e outros que preferiram se manter anônimos.
Os
pesquisadores fizeram uma análise dos dados de queimada e desmatamento
que contradizem o discurso oficial do governo de Jair Bolsonaro, que
minimizou os incêndios na Amazônia. Segundo o estudo, os incêndios em
agosto de 2019 na região foram quase três vezes maiores do que em 2018. 

Impacto

Os incêndios também têm impacto diferente nos dois ecossistemas. 
“Em
ecossistemas que evoluíram com o fogo, ele não causa um impacto tão
grande”, diz Berenguer, em relação à Austrália. “Um fogo dessa
severidade vai levar à mortalidade de árvores e de animais, só que o
ecossistema é mais resiliente ao fogo. Ele vai se recuperar numa taxa
mais rápida”, afirma.
Queimada na Amazônia
Árvores na Amazônia têm casca bastante fina e não resistem ao fogo FOTO: REUTERS
Ela dá um exemplo: em ecossistemas que
evoluíram com o fogo, as árvores têm casca bem grossa, formando uma
barreira contra chamas. Já as cascas das árvores na Amazônia são
bastante finas. 
Segundo ela, o fogo, quando entra na Floresta
Amazônica, causa uma mortalidade de cerca de metade das árvores. “A
floresta fica como um queijo suíço, esburacada. Vai entrar mais vento,
mais sol, e deixar a floresta mais quente e seca”, afirma. 
“Não
sabemos ainda o tempo que demora para a Amazônia se recuperar”, diz
Berenguer. Quando a vegetação nativa queima, ocorre uma substituição de
espécies, adaptadas a esse tipo de condição. Após o fogo, nos 10, 20
anos seguintes, ocorre uma mudança nas espécies presentes na floresta.

Reação política

Há mais
semelhanças na maneira como o primeiro-ministro australiano, Scott
Morrison, e o presidente Bolsonaro, lidaram com os eventos do que entre
os próprios eventos, opina Lees. “A semelhança está no caráter
negacionista nos dois governos”, diz Berenguer.
Em agosto do ano
passado, quando os incêndios na Amazônia ganharam manchetes em todo o
mundo, Bolsonaro minimizou os dados da Nasa (agência espacial dos EUA) e
do Inpe. Ambos apontavam maior número de focos de incêndio no Brasil em
nove anos. 
Depois, o presidente também afirmou que ONGs teriam
causado o fogo como resposta à redução de repasses de verbas federais a
elas.
Quando o caso ganhou ampla repercussão nacional e
internacional —sendo debatido até por líderes na cúpula do G7—, o
governo brasileiro decidiu enviar tropas do Exército para combater os
incêndios.
O primeiro-ministro australiano também foi acusado de
estar sendo negligente perante a crise —passou, inclusive, alguns dias
de férias no Havaí — e tem sido criticado por subestimar os efeitos do
aquecimento global nos incidentes. 
Só em dezembro Morrison admitiu haver uma conexão entre os incêndios e as mudanças climáticas, “entre outros fatores”. 
A
influência da ação humana sobre as mudanças climáticas não é um
consenso entre integrantes do governo Bolsonaro. O ministro das Relações
Exteriores, Ernesto Araújo, por exemplo, já disse ser contrário ao
“alarmismo climático”.
Para Barlow, das universidades de Lavras e
de Lancaster, estão “tentando fazer com que as pessoas joguem um jogo
de ‘o que é pior’. Os dois são ruins. Dizer que um é pior que o outro
não vai nos ajudar. Os dois governos têm o devem de atacar os
problemas”.
FONTE: BBC News

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Lucas Monteiro

Engenheiro Florestal com especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho e em Perícia e Auditoria ambiental . Formação de Auditor nos sistemas ISO 9001, ISO 14001 e ISO 45001 e FSC® (FM/COC). Experiência em Due Diligence Florestal, mitigação de riscos ambientais e Cadeia de suprimentos da Madeira para mercados internacionais (EUDR e Lacey Act).

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