Pesquisa com cannabis avança no Brasil, mas enfrenta entraves legais

Nota técnica coordenada pela Embrapa aponta mais de 480 barreiras burocráticas que dificultam estudos científicos com cannabis e o desenvolvimento do mercado medicinal e agrícola no país.

Em paralelo à repressão ao seu uso como uma droga ilegal, a cannabis é, cada vez mais, percebida internacionalmente como uma fonte de riqueza, cobiçada por setores produtivos que vão da agricultura ao setor farmacêutico.

pesquisa com cannabis
Foto: planta do gênero Cannabis no Centro de Pesquisa e Extensão da Universidade Estadual do Oregon no Norte de Willamette. Crédito: Sean Nealon/Creative Commons Attribution-Share Alike 2.0 Generic.

Só no Brasil, estima-se que 670 mil pessoas utilizem fármacos à base de cannabis para tratar problemas como esclerose múltipla, epilepsia refratária e dor crônica. Porém, a falta de regulamentação atravanca a atuação de universidades, empresas e outros interessados na pesquisa científica sobre a planta.

Algumas iniciativas estão em andamento para reverter este quadro. Uma delas foi a divulgação, em setembro, de uma nota técnica elaborada por um grupo de trabalho listando 481 empecilhos burocráticos e regulatórios enfrentados por quem conduz, ou deseja conduzir, estudos com a cannabis.

O chamado Grupo de Trabalho (GT) de Regulamentação Científica da Cannabis foi criado pela Embrapa, compreende pesquisadores de 31 instituições de ensino e pesquisa e é coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

O relatório agrupa esses tópicos em sete eixos: as autorizações para pesquisa, o acesso a insumos padronizados, as restrições ao cultivo para fins científicos, o fluxo de materiais entre instituições, as incertezas quanto ao uso de coprodutos e derivados e a falta de protocolos claros para pesquisas com animais de produção.

O documento foi encaminhado ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgãos responsáveis por regulamentar a investigação e o comércio de substâncias consideradas de controle especial. André Gonzaga dos Santos, docente da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Unesp em Araraquara e integrante do GT que elaborou a nota, diz que o documento evidencia o interesse de diversas instituições em desenvolver estudos sobre o tema e expressa os entraves que têm impedido esses avanços.

Gonzaga ressalta o enorme potencial do Brasil para lucrar com a planta. O Anuário da Cannabis Medicinal estima que o mercado brasileiro para fins farmacêuticos possa movimentar R$ 9,4 bilhões por ano. “Precisamos de uma regulamentação que garanta a autonomia das universidades para realizar pesquisa. Isso não significa que não deve ter controle, ele deve existir. Mas precisamos garantir a autonomia”, afirma o pesquisador.

O cenário atual 

Atualmente, duas normas regem a pesquisa com cannabis no Brasil. A primeira é a Portaria nº 344 de 1998, conhecida no meio farmacêutico, que lista todas as substâncias controladas ou proscritas. As controladas podem ser comercializadas em farmácias comuns mediante receita médica — que, em alguns casos, fica retida no estabelecimento. Todas as vendas são registradas no sistema da Anvisa. Já as proscritas são proibidas para uso pessoal em quaisquer circunstâncias; para fins científicos, podem ser liberadas caso a caso.

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Tanto a cannabis quanto o tetraidrocanabinol (THC), seu principal componente psicoativo, são considerados proscritos. Já o canabidiol (CBD) — molécula também presente na planta que “não dá barato”, mas têm aplicações terapêuticas promissoras —, é classificado apenas como controlado.

Autorização Especial Simplificada para Ensino e Pesquisa, emitida pela Anvisa, é o documento oficial que permite a pesquisa com substâncias proscritas. Para que as instituições recebam essa permissão, é necessário informar qual substância será estudada, os objetivos do trabalho e o fornecedor do insumo. Além disso, o trabalho precisa estar vinculado a planos de aula ou a um projeto de pesquisa específico. O prazo de resposta estimado é de até 30 dias.

Entretanto, como o cultivo da planta é proibido no Brasil, os insumos precisam ser importados de países em que a cannabis é legalizada — Canadá, Uruguai ou Paraguai, geralmente. Embora existam associações canábicas no Brasil que cultivam e produzem medicamentos à base da planta, elas operam sob autorização judicial, e a Anvisa não reconhece essa permissão, impedindo-as de fornecer material para pesquisa.

Além disso, essas poucas plantas permitidas em território nacional podem alcançar no máximo 0,3% de concentração de THC, uma quantidade insuficiente para muitas aplicações. “Muitas vezes os medicamentos de THC são os únicos efetivos para determinados pacientes. Por exemplo, existem crianças com crises epilépticas que chegam a ter 300 crises por mês, quando tomam o canabidiol, esse número reduz para duas crises por dia e quando usam THC não tem nenhuma. Tem vários relatos de casos clínicos assim”, afirma Santos.

O respaldo legal das associações é a Lei nº 11.343/2006, a Lei Antidrogas, que permite o cultivo de determinadas plantas com fins científicos ou medicinais mediante concessão judicial. Em muitos casos, é o próprio Tribunal Superior de Justiça (TSJ) que concede essas permissões. Desde 2015, houve 89 autorizações para que entidades científicas realizassem pesquisas com canabinóides, aponta o Anuário da Cannabis Medicinal. Atualmente, 40 instituições brasileiras têm equipes autorizadas a trabalhar com a planta, entre elas a Unesp.

Os principais obstáculos 

Ainda que, em tese, os caminhos legais listados acima permitam as pesquisas, o grupo de trabalho da Embrapa identificou diversos entraves que, na prática, impedem avanços sólidos na área. O principal deles é a burocracia para obtenção das autorizações, que, de acordo com a nota técnica, envolve prazos indefinidos, falta de transparência nas etapas de análise e ausência de critérios padronizados de avaliação.

“Eu tentei importar do Uruguai e Paraguai. Pedi seis amostras de canabinoides, com um miligrama cada. Elas demoraram mais de um ano para chegar e custaram mais de R$ 20 mil”, conta André Santos, da FCF em Araraquara. A importação também não garante a padronização dos insumos, já que eles vêm de países com diferentes padrões de qualidade e de plantas com diferentes genomas, o que compromete a consistência e reprodutibilidade dos resultados.

Além disso, o pesquisador afirma que um interesse importante da comunidade científica é entender como a cannabis cresce especificamente nos solos e condições climáticas do Brasil. “Estudar produtos importados não vão contribuir em nada para desenvolver a cadeia produtiva nacional, porque a planta se comporta completamente diferente aqui”, diz.

Diante desse cenário, o grupo de trabalho defende a criação de normas específicas para as pesquisas com cannabis no país, que tornem os processos mais ágeis e transparentes. “Precisamos de uma regulamentação que garanta autonomia, ainda que com controle e registro de todas as atividades. Isso traria segurança para os pesquisadores”, ressalta o pesquisador.

Essa regulamentação ajudaria a padronizar os procedimentos científicos e beneficiaria os setores farmacêutico e agrícola — além de reduzir os custos das pesquisas e, por tabela, o preço final dos medicamentos quando eles chegam às gôndolas. Medicamentos à base de canabinoides que custam até R$ 2 mil nas versões importadas têm equivalentes nacionais fabricados por associações canábicas que alcançam só 40% desse valor.

Além disso, o cânhamo industrial — nome que se dá a variedades de cannabis com baixo teor de THC cultivadas para obtenção de fibra — tem grande potencial econômico para a indústria têxtil e a produção de papel.

Em novembro de 2024, o Supremo Tribunal de Justiça determinou que “a União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editassem a regulamentação autorizando a importação de sementes, o plantio, cultivo e comercialização da variedade da cannabis para fins exclusivamente medicinais.” Até o momento, porém, o processo segue sem avanços. Em 1º de outubro deste ano, a Advocacia-Geral da União (AGU) solicitou mais 180 dias para concluir a análise.

Unesp e a pesquisa com cannabis

Em setembro, a Unesp firmou uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário para criar o Núcleo de Desenvolvimento da Cannabis (NuDeCann) no câmpus de Ilha Solteira, no extremo oeste do estado de São Paulo. Esse centro multidisciplinar juntará universidades, empresas privadas e o terceiro setor com o objetivo de aperfeiçoar a genética de plantas nacionais e aprimorar tecnologias de cultivo e colheita, fortalecendo as bases científicas para pesquisas com cannabis medicinal.

O professor Marcos Chiquitelli Neto, coordenador do NuDeCann, conta que, “em Ilha Solteira, nós vamos realizar o processo de plantio, conduzido em conjunto com associações do terceiro setor. Vamos enviar esse material para o Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos da Unesp (Cevap) para analisarem a parte química dos produtos e assim por diante. No futuro, o próprio NuDeCann terá uma parte básica, pelo menos farmacológica, de trabalho com esse produto”, explica.

Além do núcleo, a Unesp abriga outras iniciativas independentes. Atualmente, 175 pesquisadores da universidade estudam a planta — entre eles, 45 graduandos, 71 pós-graduandos, 7 pós-doutorandos e 54 docentes. Com a intenção de integrar esses projetos e comentar colaborações entre os pesquisadores, Chiquitelli e Santos apresentaram, neste ano, a proposta de criação da Rede Unesp de Cannabis (ReUneCann).

Para Chiquitelli, a atuação em grupo por meio da ReUneCann ajudará a superar os obstáculos que a pesquisa com cannabis enfrenta no Brasil. “Nós temos cinco campi envolvidos nesse projeto. É um tema que congrega pessoas diferentes, que entendem a importância da cannabis para a melhoria da vida de pessoas e animais. A planta ainda é um tabu, essa é a realidade.”

Fonte: Jornal da Unesp


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Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

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