A floresta de araucárias, no Sul e Sudeste do Brasil, tem uma história complexa, influenciada por fatores climáticos e humanos. A Araucaria angustifolia, árvore dominante nessa formação florestal, fornece alimento e abrigo para várias espécies, incluindo os humanos. Um estudo, realizado por colaboração internacional de pesquisadores, utilizou técnicas avançadas de sequenciamento de DNA, aprendizado de máquina e análise de registros de pólen fóssil para investigar as expansões e retrações passadas da mata de araucárias e identificar os impactos do clima no passado e da atividade de grupos humanos ancestrais nesse processo. Os resultados foram publicados no periódico Ecography.
“Tanto fatores climáticos quanto humanos desempenharam papéis importantes na dinâmica da floresta de araucárias. Mas há diferenças significativas entre o processo que ocorreu no Planalto Sul do território brasileiro e aquele que aconteceu na Serra da Mantiqueira, que se estende pelos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. E isso pode estar associado à ocupação humana mais intensa no Sul do Brasil”, diz Mariana Mira Vasconcellos, pós-doutoranda do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e primeira autora do estudo.
A pesquisadora detalha: “A expansão da população de araucárias do Núcleo Sul começou durante o último Período Glacial, há cerca de 70 mil anos, muito antes da data presumida da chegada dos humanos na América do Sul, o que contradiz a ideia de uma expansão de origem antrópica. Em vez disso, interpretamos essa expansão inicial como uma resposta às mudanças climáticas do Pleistoceno Superior. O clima mais úmido e frio desse período teria provocado também a expansão de outras espécies de araucária na Austrália e na Nova Caledônia. Já a população isolada da Mantiqueira expandiu-se apenas muito recentemente, cerca de 3 mil anos atrás. Embora isso possa ter acontecido em resposta a um curto evento de resfriamento climático no Holoceno e ao aumento da precipitação das monções de verão na América do Sul, entre 4 mil e 3,3 mil anos atrás, não se pode descartar um possível impacto dos assentamentos humanos no Sudeste do Brasil”.
Mas Vasconcellos ressalva que não se deve assumir isso como fato demonstrado, pois, até o momento, as evidências arqueológicas de assentamentos humanos na Mantiqueira são escassas em comparação com as do Planalto Sul do Brasil.
No caso do Sul, as análises genéticas indicam que, se a expansão inicial das araucárias não decorreu da ação humana, seu desenvolvimento posterior foi significativamente impactado pela atividade antrópica. Essa influência resultou em menor diversidade genética, maior endogamia e maior fluxo gênico por longas distâncias, sugerindo que os humanos facilitaram a dispersão e a germinação de sementes devido ao consumo do pinhão.
“Se você considera duas árvores, dois indivíduos da mesma espécie, quanto mais distantes se encontram, maior a diferenciação genética entre elas. É o que se espera de um processo natural. Mas não foi o que observamos na população de araucárias do Sul do Brasil. Árvores separadas por longas distâncias são geneticamente muito semelhantes. Isso sugere que alguém percorreu essas distâncias, levando as sementes de um lugar ao outro. Poderiam ser animais que se alimentam de pinhões. Mas também, e com maior probabilidade, poderiam ser humanos”, argumenta a pesquisadora.
E continua: “Existem hoje vários estudos mostrando evidências de manejo humano na floresta amazônica. A gente não tem isso no Sul do Brasil. Não tem sinais no solo mostrando o manejo. Porém, a araucária é uma planta que não necessita de manejo. A araucária germina muito facilmente. O pinhão cai no chão e basta um pouquinho de chuva para que germine. O simples fato de os humanos comerem pinhões e carregarem as sementes em suas expedições já teria sido suficiente para a dispersão da espécie. O armazenamento e o transporte de sementes são, até hoje, práticas comuns entre os povos indígenas da região”.
Ademais, existe outra evidência. No Sul do Brasil e no Uruguai há uma grande quantidade de sítios arqueológicos chamados de “casas subterrâneas”. Acredita-se que essas estruturas, construídas por populações do tronco linguístico Proto-Jê, tenham servido de abrigo para seus moradores, a exemplo do que ocorre com as casas de aldeias indígenas atuais. O estudo verificou que as áreas onde estão localizadas as casas subterrâneas coincidem com a distribuição atual da floresta de araucárias, sugerindo que os humanos possam ter escolhido esses locais devido à abundância de recursos proporcionados pela espécie vegetal. “A araucária tem uma grande importância cultural no Sul do Brasil. Estudos arqueológicos, incluindo pinturas rupestres e análises de restos de comida e tártaros encontrados em dentições de crânios humanos, indicam que essa árvore era uma fonte crucial de alimento e pode ter sido dispersada pelos povos indígenas”, ressalta Vasconcellos.
A araucária é uma árvore nativa na América do Sul. Mas existem no continente apenas duas espécies: a Araucaria angustifolia, no Sul do Brasil, e a Araucaria araucana, no Chile. Há outras espécies na Austrália, Nova Zelândia, Nova Caledônia etc. No Brasil, as duas populações de Araucaria angustifolia, a do Sul e a da Mantiqueira, divergiram em torno do penúltimo Máximo Glacial, há cerca de 149 mil anos, época em que parte do globo foi coberta por extensa camada de gelo, com forte impacto na área que corresponde hoje à região Sudeste do território brasileiro. Após isso, em torno de 70 mil anos atrás, a população do Sul começou então a expandir e, por volta de 16 mil anos atrás, a floresta de araucárias atingiu sua maior extensão, impulsionada pelo chamado Evento de Heinrich 1, que provocou o desprendimento de icebergs no Atlântico Norte, resultando em picos de umidade durante períodos frios no Brasil.
“Os dados levantados pelo estudo sugerem que as populações remanescentes de araucária, especialmente na Serra da Mantiqueira, que responderam bem ao longo período de estabilidade climática do Holoceno, enfrentam agora sérias ameaças devido ao reduzido tamanho populacional, à fragmentação florestal provocada pela recente atividade antrópica e à crise climática global, que ocasiona temperaturas mais elevadas no Sudeste brasileiro. Requerem, por isso, políticas efetivas de preservação”, conclui Vasconcellos.
O estudo foi coordenado por Ana Carolina Queiroz Carnaval, da City University of New York (Cuny), e por Fabián Michelangeli, do New York Botanical Garden (NYBG), ambas as instituições sediadas em Nova York, no Estados Unidos. Recebeu apoio da FAPESP por meio do Projeto Temático “Dimensions US-BIOTA São Paulo: integrando disciplinas para a predição da biodiversidade da Floresta Atlântica no Brasil”.
O artigo Evaluating the impact of historical climate and early human groups in the Araucaria Forest of eastern South America pode ser acessado em: https://nsojournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/ecog.06756.
Fonte: Agência FAPESP
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