Baseado em dados científicos sobre estado geral de saúde dos ecossistemas aquáticos amazônicos no Brasil, o inédito Índice de Impacto nas Águas da Amazônia sintetiza dados de monitoramento e pesquisa para apontar as áreas mais vulneráveis da floresta.
- De acordo com o índice, 20% das 11.216 microbacias da Amazônia no Brasil têm impacto considerado alto, muito alto ou extremo; metade destas microbacias estão afetadas por hidrelétricas.
- O mesmo índice aponta que 323 das 385 Terras Indígenas na Amazônia Legal têm índice de impacto de médio para baixo, o que demonstra o papel fundamental dessas áreas na proteção dos ecossistemas aquáticos da Amazônia.
- A Bacia Hidrográfica Amazônica cobre 7 milhões de quilômetros quadrados e contém 20% de toda a água doce da superfície da Terra. Ainda assim, pouco se sabe sobre os impactos do aumento da atividade humana predatória nos ecossistemas aquáticos.
A Amazônia perdeu 12% da sua superfície de água – um total de 1.104.575 ha, equivalente à metade do território de Sergipe – nos últimos 30 anos, anunciou em setembro do ano passado um levantamento da rede colaborativa MabBiomas. Segundo a iniciativa, “a dinâmica de uso da terra baseada na conversão da floresta para pecuária e agricultura e a construção de represas contribuem para a diminuição do fluxo hídrico”.
Um dos principais resultados do Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA), desenvolvido pela Ambiental Media com apoio do Instituto Serrapilheira, aponta na mesma direção: um quinto das microbacias hidrográficas da Amazônia brasileira estão significativamente impactadas.
Esses números negativos impressionantes expõem a real extensão da degradação dos ecossistemas aquáticos da Amazônia e indicam que a crise hídrica brasileira é ainda mais grave do que aparenta. “É preciso uma revisão urgente das políticas de conservação do meio ambiente voltada às águas”, afirma a bióloga Cecília Gontijo Leal, consultora científica do projeto Aquazônia.
O IIAA, criado para contribuir com esse debate, não pretende ser uma ferramenta de precisão acadêmica, mas um produto de jornalismo científico com base em dados disponíveis. Seu objetivo é expor as regiões e bacias mais impactadas com clareza gráfica, ao lado de opiniões qualificadas. E, com isso, tornar-se uma plataforma de referência para o entendimento dos principais impactos da atividade humana nos ecossistemas aquáticos da Bacia Hidrográfica Amazônica, que cobre uma área de 7 milhões de quilômetros quadrados ao longo de oito países e responde por aproximadamente 18% de toda a água doce que chega aos oceanos.
Mais do que ostentar números de proporções colossais, a água na Amazônia é o agente de conexão. Ela transborda do degelo dos Andes e escorre na forma de rios que, ao longo de seu curso, alimentam comunidades humanas e irrigam matas e planícies ricas em espécies de fauna e flora. A evapotranspiração da biomassa vegetal transfere água para a atmosfera em um ciclo anual de chuvas que retroalimentam os estoques do bioma e viajam continente afora – os chamados “rios voadores” irão irrigar lavouras e garantir o abastecimento de centros urbanos mais ao sul do Brasil.
Clima, economia, ciência, cultura, ecologia, energia, política, biodiversidade: isto é a floresta-água.
A intensidade das ameaças à bacia
O Índice de Impacto nas Águas da Amazônia, desenvolvido pela Ambiental Media com apoio do Instituto Serrapilheira, não pretende ser uma ferramenta de precisão acadêmica, mas um produto de jornalismo científico com base em dados disponíveis. Seu objetivo é expor as zonas de impacto com clareza gráfica, ao lado de opiniões qualificadas. E, com isso, tornar-se uma plataforma de referência para o entendimento dos principais impactos da atividade humana nos ecossistemas aquáticos da Bacia Amazônica.
No debate internacional sobre a conservação da região, predomina há décadas um padrão de levantamento e análise de dados sobre a degradação da cobertura vegetal: as queimadas, o desmatamento, os garimpos, o boi, a soja. A Amazônia como fonte de matérias-primas. Os ecossistemas aquáticos também sofrem com todas as mazelas da atividade humana – a perda da floresta afeta o ciclo hidrológico -, mas os danos são mais difíceis de serem identificados e entendidos.
Um corpo hídrico não sofre apenas com a poluição causada pelos resíduos urbanos, como normalmente pensamos. “Quando falamos de fogo, de degradação florestal, não se trata apenas do ar ou do solo: isso também significa problemas no ambiente aquático”, diz Cecília Gontijo Leal, bióloga da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, vinculada à Universidade de São Paulo (USP). “Ao medir o impacto de uma obra que afeta um rio, muitas vezes se lida apenas com os problemas da vegetação das margens.”
“Mesmo que a maioria dos impactos aferidos no índice esteja acontecendo na terra, o nosso olhar voltou-se para a localização, a intensidade e a escala da pressão que exercem sobre os corpos hídricos, em cada microbacia”, explica Cecília, consultora científica do projeto Aquazônia.
Durante o processo de desenvolvimento do índice, muitas vezes foi preciso flexibilizar as medidas dos impactos, seja pela ausência de dados seja pelo fato de que cada microbacia é um complexo ecológico individual, pleno de particularidades ambientais ou legais. Por exemplo: o impacto causado por barragens de hidrelétricas ou desmatamento é mais claro. O mesmo não se pode dizer das redes de milhares de pequenas estradas clandestinas – ao cruzar a floresta, elas cortam também a teia de cursos d’água espalhados pela paisagem.
“Na Amazônia, os impactos mudam de acordo com a característica de cada ecossistema”, diz Cecília. “O desmatamento afeta mais as várzeas e matas de igapó. Já um barramento de igarapé altera a dinâmica do ambiente, seu fluxo de matéria orgânica e a dispersão das espécies.”
Igualmente desafiador foi aferir o alvo, o alcance e a força de cada fator de pressão. Os impactos são piores para as populações locais ou para a fauna e flora? Difícil precisar – eles nem sequer são efetivos para todos os animais. Peixes migradores, por exemplo, sofrem com os barramentos de usinas hidrelétricas, mas outras espécies não sentem.
Por fim, se não é ainda possível especificar qual o pior impacto, é certo que eles são maiores nas regiões em que se sobrepõem.
“As áreas mais degradadas são aquelas em que as pressões se somam. Quando ampliamos um zoom nas microbacias, fica claro que o impacto na água é tão forte quanto na terra”, completa Laura Kurtzberg, professora na Universidade Internacional da Flórida e especialista em visualização de dados. “É um drama silencioso.” E, a tudo isso, soma-se o impacto menos tangível das mudanças climáticas. O resultado final do índice traz uma visão geral concreta das ameaças à bacia, mas limites devem ser compreendidos.
Lacunas de dados num mundo de águas
“Na Amazônia, quanto mais avançamos em direção à água, menos conhecimento existe”, avalia Angélica Resende, do Laboratório de Silvicultura Tropical da Universidade de São Paulo.
O desafio não se restringe às pesquisas ainda escassas, mas ao próprio monitoramento do meio.
A única forma de se trabalhar na Amazônia para monitorar grandes escalas é o sensoriamento remoto, mas “os desafios de trabalhar com água são diferentes dos desafios de trabalhar com floresta, desmatamento. É mais complexo”, conta Cláudio Barbosa, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador do Laboratório de Instrumentação de Sistemas Aquáticos (LabISA).
A perda de área florestal chama a atenção da comunidade internacional desde a década de 1980 – o Inpe passou a medir o desmatamento com dados de satélite em 1988. Segundo Barbosa, a primeira geração de sensores no Brasil permitia apenas análise das margens e do solo, no desmatamento e na mineração.
Tecnologias que permitem aferir melhor os corpos aquáticos começaram a surgir em 2016. É pouco tempo para a obtenção de resultados, explica o pesquisador. Por outro lado, o Inpe já lida com algoritmos que permitem estimar a variação de sedimento da água. “Esse mapeamento, que chamamos de CADE”, diz Barbosa, “é a composição da luz na coluna d’água. Essa luz é a energia que alimenta o fitoplâncton e permite a diversidade de peixes.”
“Para analisar a qualidade da água, temos que trabalhar com a concentração de sedimento, de clorofila e de matéria orgânica dissolvida. Esses três parâmetros já são possíveis de mapear por satélite.”
A ausência de dados mais consolidados sobre a água compromete as percepções do meio, o foco científico, as políticas públicas, os projetos de conservação. Edgardo Latrubesse, especialista em geomorfologia fluvial e professor da Universidade Federal de Goiás, observa que políticas públicas no setor hídrico já existem. “Temos uma boa Lei de Recursos Hídricos e os comitês de bacias. O problema do Brasil é que nós temos boas leis, mas ninguém as segue.”
Por outro lado, diz Cecília Leal, as leis enxergam os ecossistemas aquáticos apenas como recurso – ou seja, úteis para uso pelo homem. Com isso, ficam de lado aspectos ecológicos mais amplos, como a biodiversidade. Na Agência Nacional de Águas, os rios são medidos e vistos pelo potencial utilitarista de depuração de poluição. “É um serviço importante, mas não podemos pensar os corpos hídricos apenas pela sua capacidade de diluir resíduos.”
Sem dados sobre a situação atual, não há como planejar o futuro de ecossistemas que estão em constante transformação, alerta Leandro Castello, da Universidade Virginia Tech, nos Estados Unidos. Com isso, no longo prazo, deixamos de ter referências. “O que hoje é ‘muito peixe’ para nós é nada comparado ao que era ‘muito peixe’ para os nossos avós”, diz o pesquisador.
“Os rios hoje estão completamente diferentes do que eram 40 anos atrás – mas ninguém sabe.”
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