O Vale do Ribeira de Iguape foi palco para muitas coletas paleontológicas na década de 1980, mas alguns materiais estão sendo reexaminados na atualidade. Um estudo publicado na Revista Brasileira de Paleontologia apresenta uma análise detalhada dos Toxodontes, revelando novas informações sobre a relação desses mamíferos gigantes extintos da megafauna sul-americana com os humanos. Um dos pontos altos foi a descoberta de indícios em um dente que poderia ter sido usado como forma de adereço ou ornamentação.

“A maioria dos espécimes já encontrados se localizavam no Nordeste do Brasil e em outros países, como Colômbia, Bolívia e Venezuela”, explica o primeiro autor do artigo Paulo Ricardo de Oliveira Costa, aluno de Iniciação Científica no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH) do Instituto de Biociências (IB) da USP. Dados prévios indicavam que humanos e megafauna teriam coexistido entre o fim do Pleistoceno e o início do Oligoceno, tanto temporal como geograficamente. “Meu trabalho foi o primeiro a confirmar evidências mais fortes de interação entre eles na região do atual Estado de São Paulo”, afirma o membro do Programa Jovens Pesquisadores da Fapesp. As duas espécies avaliadas, Mixotoxodon larensis e Toxodon platensis, podem ter sido as últimas do grupo a habitar o território brasileiro.
O grande diferencial da pesquisa é a interdisciplinaridade entre a paleontologia e a zoologia, buscando um melhor entendimento da história inscrita nos materiais. A partir de fósseis de dentes, os cientistas conseguiram se aprofundar em doenças que acometeram esses animais, as chamadas paleopatologias, além de analisar as intervenções potencialmente humanas.
Maria Mercedes Martinez Okumura é coordenadora do LEEH e docente do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB. Seu projeto visa a compreender a evolução biocultural de grupos humanos pretéritos no Vale do Ribeira. “Muitas pesquisas paleontológicas são feitas apenas com viés de identificação taxonômica, então quisemos acrescentar um novo olhar”, comenta.

A megafauna pleistocênica
O Pleistoceno refere-se ao período geológico que durou de 2,6 milhões de anos até 11.700 anos atrás, cuja fauna era composta de mamíferos herbívoros, onívoros e mega-herbívoros. A ordem Notoungulata é um grupo nativo da América do Sul composto de 140 gêneros distintos, dos quais apenas o Toxodontidae é registrado no Brasil. T. platensis é a espécie mais representativa do gênero: com corpo robusto e atingindo quase 1.800 kg, sua ocorrência é registrada em diversos Estados.
Uma inovação do estudo foi registrar um indivíduo muito jovem de T. platensis — descoberta importante pois há poucos dados, em toda a América do Sul, de Toxodontes juvenis. Artur Chahud, pesquisador colaborador do IB, orientou a publicação do artigo. “O material é interessante pois data de um período de transição ambiental e mudança na vegetação do Vale da Ribeira”, explica. “Antigamente a região era de campos abertos; hoje é uma floresta.”


O maior destaque da pesquisa foi registrar, pela primeira vez na história, incisões em dois dentes de T. platensis compatíveis com grupos pré-históricos. Os cortes foram feitos após a morte do animal, e os pesquisadores inferiram que o objetivo era extrair o dente da mandíbula: a hipótese principal de Paulo Costa é que os humanos tenham utilizado o dente como forma de adereço ou ornamentação.
“Em outros lugares da América do Sul existem sítios arqueológicos com registros bem fortes de consumo de megafauna, mas no Brasil nunca se encontrou evidências”, compara Mercedes Okumura.
“Nesse sentido, a pesquisa do Paulo é importante porque complementa o que já conhecíamos sobre a coexistência entre humanos e megafauna, e nos mostra que realmente ocorreu uma interação próxima manipulativa.”
O material também indica a presença do M. larensis em uma região nunca antes observada. “Um dos dentes que analisei foi o registro mais ao sul dessa espécie, que a gente não considerava existir no Sudeste do Brasil”, conta Paulo Costa. “Isso traz toda uma nova distribuição geográfica para o grupo.”

Paulo Costa relata que, além da coleção de campo, parte do material utilizado na pesquisa fazia parte do acervo do Museu de Zoologia (MZ) da USP, da coleção do Instituto de Geociências (IGc) da USP e do Laboratório de Anatomia Vegetal do IB. Esses acervos paleontológicos são cruciais para entender a relação entre fauna e grupos humanos do passado.
“No Brasil, há muita desinformação sobre a importância de acervos de museus e coleções. Mas esses materiais, coletados na virada do século 20 para o século 21, ainda rendem novos estudos, novos resultados e novas interpretações sobre o passado. […] Tecnologias são desenvolvidas constantemente e podem ser aplicadas, então precisamos valorizar nossos museus e lutar pela sua preservação”
Mercedes Okumura
Artur Chahud complementa que trabalhos antigos podem ter sido deixados de lado, mas os materiais têm potencial irrestrito de estudo. “Isso se aplica desde a áreas que pesquisam diretamente o animal até estudos ambientais — muitos animais são a chave para indicar como era o ambiente em épocas passadas”, realça.
Frente às mudanças climáticas enfrentadas nos dias de hoje, entender o desenvolvimento das populações ao longo da história do planeta Terra é essencial. “A mudança na área de habitação dos animais e humanos pode voltar a se repetir”, frisa. Isso faz parte da Paleobiologia da Conservação, ramo da ciência que avalia registros paleoecológicos a fim de obter dados sobre o funcionamento dos ecossistemas antes do impacto humano, auxiliando a entender as extinções recentes e os riscos futuros de extinção.
O artigo está disponível on-line e pode ser lido aqui.
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