As conclusões partiram de um mapeamento feito com sensores dotados da tecnologia óptica Lidar (detecção de luz e medida de distância). Acoplado a um drone ou a bordo de um veículo aéreo, o equipamento emite milhares de pulsos laser por segundo e, a cada pulso, calcula uma medida de distância. “É quase como uma radiografia”, explica o geógrafo Vinicius Peripato, estudante de doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e primeiro autor do estudo. Graças à alta precisão do equipamento, ele e seus colegas conseguiram enxergar o relevo da floresta amazônica por baixo da copa das árvores utilizando processamento de dados.
De cima, em áreas já desmatadas na parte oeste da Amazônia, é possível observar enormes formas geométricas no solo, chamadas de geoglifos. A partir dos anos 2000, os geoglifos passaram a ser vistos por meio de imagens de satélite, tanto por cientistas quanto por amadores, usando a ferramenta Google Earth. “Foi possível identificar centenas dessas estruturas, principalmente no oeste da Amazônia”, conta o biólogo Luiz Aragão, chefe da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Inpe, orientador de Peripato e coordenador do artigo da Science.
Nos últimos 20 anos, escavações feitas por arqueólogos mostraram que as formas geométricas foram locais de importância religiosa. Sabendo da existência das estruturas, Peripato e seus colegas criaram a hipótese de que outros vestígios de ocupação humana poderiam existir por baixo do dossel da floresta. Começar a procurá-los foi um desafio.
Originalmente, os dados de sensoriamento Lidar visavam estimativas de biomassa, não tinham resolução adequada para observações arqueológicas. “Testes anteriores indicavam a possibilidade de ocorrência dessas estruturas, mas nada preciso”, explica Peripato. Apostando nessa hipótese, o grupo desenvolveu um método para retirar virtualmente a floresta e melhorar aspectos do relevo. “Deu certo, felizmente encontramos 24 estruturas até então desconhecidas.” O equipamento cobriu 5.315 quilômetros quadrados (km²) da Amazônia, o equivalente a 0,08% da floresta.
Animado com a descoberta, o pesquisador desenvolveu um modelo matemático para estimar quantos seriam e onde estariam outros geoglifos similares no território, levando em conta uma série de variáveis ainda desconhecidas. Ele cruzou os dados fornecidos pelo sensor Lidar com informações de outras 937 estruturas arqueológicas já conhecidas e, com esse modelo, calculou que existam pelo menos 10.272 estruturas pré-colombianas ainda não descobertas, podendo chegar até a 23.648 na floresta inteira – um território de 6.700 km². A distribuição de 53 espécies de plantas domesticadas, utilizadas na alimentação, foi mapeada em inventários florestais prévios e poderá servir como indicação da existência das estruturas arqueológicas na imensidão da Amazônia.
“Foi um trabalho que, para ser realizado, exigiu uma equipe multidisciplinar e o uso de uma tecnologia de ponta”, avalia Aragão. A datação dos geoglifos ainda não descobertos foi estimada com base na literatura arqueológica já existente sobre essas estruturas, mas só poderá ser confirmada quando houver um trabalho de escavação e coleta de material para análise.
“É um artigo importante que confirma algo que os arqueólogos dizem há anos: tinha muita gente vivendo na Amazônia no passado”, comenta o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). “Esses povos viviam ali e também modificavam a floresta”, afirma. Os indícios de presença humana na região datam de cerca de 12 mil anos atrás. Para uma parte dos especialistas, a Amazônia é um patrimônio biocultural que sofre influências tanto da própria natureza quanto da população que viveu e ainda vive por ali.
“As modificações feitas na floresta são informações muito valiosas para que possamos entender melhor como é a estrutura de um bioma que foi ocupado por milênios, como é a resiliência naquela área e como ela busca voltar a seu formato original”, comenta Peripato. “Com os processos de mudanças climáticas, compreender como a floresta opera é de extrema relevância.”
Neves diz que boa parte dos geoglifos ainda preservados está em terras de proteção ambiental, de ocupação indígena. “São os indígenas que preservam as estruturas em meio ao avanço do agronegócio e da destruição que está acontecendo na Amazônia”, opina o pesquisador. Para ele, a presença indígena sempre esteve por todo o Brasil, é muito antiga e contribuiu para criar os biomas do país. “Não dá pra separar a história deles da história do Brasil.”
Projetos
1. Transição para sustentabilidade e o nexo água-agricultura-energia: Explorando uma abordagem integradora com casos de estudo nos biomas Cerrado e Caatinga (nº 17/22269-2); Modalidade Projeto Temático; Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Pesquisador responsável Jean Pierre Ometto (Inpe); Investimento R$ 3.414.563,06.
2. Modelagem decenal das emissões brutas de carbono derivadas de incêndios florestais na Amazônia (nº 18/14423-4); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Luciana Vanni Gatti (Inpe); Bolsista Henrique Luis Godinho Cassol; Investimento R$ 664.726,13.
3. Explorando o risco de expansão de savanas na América do Sul Tropical sob mudanças climáticas (nº 16/25086-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (Unicamp); Bolsista Bernardo Monteiro Flores; Investimento R$ 287.363,70.
Artigos científicos
PERIPATO, V. et al. More than 10,000 pre-Columbian earthworks are still hidden throughout Amazonia. Science. On-line. 06 out. 2023.
LEVIS, C. et al. How People Domesticated Amazonian Forests. Frontiers in Ecology and Evolution. On-line. 17 jan. 2018.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
Descubra mais sobre Florestal Brasil
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.