Um simples clique foi suficiente para registrar o felino mais ameaçado do mundo. O contraste da cena em preto e branco destacou as marcantes listras pretas nas quatro patas do felino. A característica inconfundível revelou a presença de um gato-palheiro-do-pampa, uma das espécies felinas mais ameaçadas do planeta, com uma estimativa de menos de 50 indivíduos na natureza. Capturar uma imagem desse felino em seu habitat natural é uma proeza rara, tornando essa modesta fotografia, obtida por uma armadilha fotográfica, verdadeiramente inestimável.
“A armadilha, ao ser acionada pelo sensor de movimento, filma e fotografa. No entanto, ocorreu uma falha técnica, impedindo a filmagem, mas ao menos conseguimos a foto”, compartilha a professora Ana Rovedder. Ela lidera o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (NEPRADE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), responsável pelo projeto RestauraPampa. O projeto recebe apoio do GEF Terrestre, por meio do Funbio, e Ana Rovedder iniciou, neste ano, a coordenação da Rede Sul de Restauração Ecológica.
A imagem foi capturada em janeiro na Reserva Biológica do Ibirapuitã, uma área protegida estadual de 351 hectares localizada no município gaúcho de Alegrete, no sudoeste do estado. É a primeira vez que se documenta a presença desse animal dentro de uma unidade de conservação.
O gato-palheiro-do-pampa (Leopardus munoai), como o nome sugere, mantém uma relação íntima com o bioma gaúcho, com sua pelagem “de palha” permitindo a camuflagem na vegetação campestre. Sua distribuição abrange os campos nativos que se estendem do Rio Grande do Sul até o Uruguai e a Argentina.
No entanto, monitorar esse felino não é tarefa fácil. “Ele é um gato errante, um gato fantasma, que não forma famílias e está constantemente em movimento. Além disso, ele depende do campo, não sendo adaptado a ambientes florestais”, destaca Rovedder.
O zoólogo Fábio Mazim, consultor ambiental que apoia o projeto de monitoramento e membro do Pró-Carnívoros, destaca a especificidade dessa relação. Os gatos-palheiros preferem campos que não sejam nem muito rasteiros, nem muito arbustivos. “Atualmente, restam cerca de três milhões de hectares desse campo, os quais estão sofrendo impactos significativos”, ressalta.
Além da perda de habitat, o gato-palheiro-do-pampa enfrenta ameaças como predação por cachorros, caça por retaliação e atropelamentos. “Setenta por cento dos registros que temos são de atropelamentos. Sabe por quê? Porque eles estão se restringindo a viver nas faixas de domínio de rodovias, as laterais da pista, o único lugar não impactado pela agricultura. Isso os torna presas fáceis, uma armadilha ecológica”, explica Fábio.
Uma análise recente liderada pelo zoólogo revela que desde que a espécie foi descrita no início do século XX, foram registrados apenas pouco mais de 200 avistamentos desse gato, o que equivale a uma média de 1,28 por ano.
O gato-palheiro-do-pampa é considerado o felino mais ameaçado do Brasil e possivelmente do mundo. Estima-se que existam apenas entre 35 e 50 indivíduos na natureza. “É uma espécie que não pode se salvar sozinha. É necessária a intervenção humana”, conclui o zoólogo.
Ainda que possa ser considerada uma medida drástica, Fábio acredita que talvez a única solução para a espécie seja capturar indivíduos de vida livre para reproduzí-los em cativeiro, o que é chamado de manejo ex situ, ou seja, fora do ambiente natural. Atualmente, não há nenhum indivíduo da espécie em cativeiro no Brasil. A única experiência do tipo acontece no Uruguai, onde há três desses felinos em cativeiro, mas, até agora, os biólogos uruguaios não tiveram sucesso nas tentativas de reprodução. “Porque senão vai se perder não apenas a espécie na natureza, mas também na face da terra”, alerta.
Embora possa ser considerada uma medida drástica, Fábio acredita que talvez a única solução para a espécie seja capturar indivíduos de vida livre para reproduzi-los em cativeiro, o que é chamado de manejo ex situ, ou seja, fora do ambiente natural. Atualmente, não há nenhum indivíduo da espécie em cativeiro no Brasil. A única experiência do tipo acontece no Uruguai, onde há três desses felinos em cativeiro, mas, até agora, os biólogos uruguaios não tiveram sucesso nas tentativas de reprodução. “Porque senão vai se perder não apenas a espécie na natureza, mas também na face da terra”, alerta.
Apesar disso, a espécie nem sequer aparece na Lista Vermelha da fauna ameaçada do país. Na época da avaliação de felinos, atualizada pela última vez em 2014, conhecia-se somente uma espécie de gato-palheiro, o Leopardus colocolo – classificado como Vulnerável à extinção – que teria duas subespécies. Isso foi revisto apenas em 2020, quando a ciência passou a reconhecer o gato-palheiro-do-pampa (Leopardus munoai) como uma espécie.
O trabalho de monitoramento começou em dezembro de 2020, com armadilhas fotográficas em duas unidades de conservação. Além da Rebio, onde o gato-palheiro foi documentado, há câmeras no Parque Estadual do Espinilho, a cerca de 200 quilômetros da reserva biológica.
Devido ao comportamento errante e solitário dos animais, monitorá-los é uma tarefa muito difícil. Através das câmeras, os pesquisadores esperam obter novas informações sobre a espécie, sobre a qual ainda se sabe muito pouco. “Mantivemos as câmeras nos mesmos locais, porque se conseguirmos captar comportamento fixo em uma trilha, em um local, talvez seja a primeira vez que poderemos falar em população de gato-palheiro, porque eles são solitários”, explica Ana Rovedder, professora da UFSM.
Esse comportamento solitário era reforçado pelo fato de que, até muito recentemente, não havia o registro de nenhuma população de gato-palheiro-do-pampa. Graças ao esforço de monitoramento dos projetos de conservação, foi possível fazer seis novos registros da espécie por armadilha fotográfica e identificar duas populações, em dois locais diferentes. “É a primeira vez que se repete o registro dos mesmos indivíduos”, comemora o consultor do projeto Fábio Mazim.
Os novos registros foram feitos pelas câmeras do RestauraPampa e da “Expedição gato-palheiro-pampeano”, iniciativa da qual também participa Fábio Mazim, do Pró-Carnívoros, junto com outros quatro pesquisadores, três consultores da iniciativa privada e um representante do Ibama do Rio Grande do Sul.
“O nosso plano hoje é tentar registrar uma população ou indivíduos que estejam ocupando um território de forma residencial. E aí tentar capturar, colocar um rádio colar e monitorar ecologia espacial. Ver realmente qual é o tipo de campo que ele gosta e necessita, tamanho de área de vida, etc”, explica o zoólogo.
As imagens das armadilhas fotográficas do RestauraPampa são monitoradas a cada trimestre. Junto com o registro do gato-palheiro-do-pampa, também foram flagradas outras duas espécies de felinos: o gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroyi), documentado no Parque Estadual do Espinilho, e o gato-maracajá (Leopardus wiedii), que foi registrado na Reserva Biológica do Ibirapuitã. Ambas as espécies são classificadas como Vulneráveis à extinção no país.
“São duas unidades de conservação muito invisibilizadas e esses registros mostram o valor dessas áreas, que são os corredores finais de Pampa que a gente tem. Se a gente não tiver elas, a gente não tem refúgio para essa fauna e flora específica”, destaca Rovedder.
A especificidade da biodiversidade mencionada pela pesquisadora é o que a ciência identifica como endemismo, onde as espécies se encontram exclusivamente em uma região ou bioma específico, coevoluindo com o ambiente e, portanto, conseguindo sobreviver somente nesse local. Isso se aplica ao gato-palheiro-do-pampa, assim como a diversas outras espécies. A vegetação dos campos sulinos, por exemplo, abriga mais de 400 espécies endêmicas da flora, com ocorrência restrita ao Pampa brasileiro.
“O Pampa é um dos biomas de campo mais biodiversos do mundo”, enfatiza Ana Rovedder.
No entanto, apenas 3,14% do Pampa está abrangido por unidades de conservação, totalizando menos de 600 mil hectares. Dentro desse já reduzido território protegido, menos de um quarto (21,4%) é categorizado como proteção integral, enquanto o restante está na categoria de uso sustentável, mais flexível e permissivo em relação às atividades humanas e seus impactos.
“O comportamento do gato-palheiro-do-pampa é se esconder nas moitas de campo, onde ele protege os filhotes, se reproduz e se alimenta de pequenos ratinhos nativos do pampa. Ele manifesta todo o comportamento relacionado à alimentação, abrigo e reprodução nos campos. A espécie levou milhares de anos para se adaptar a esse ambiente. Sem os campos, como ela vai sobreviver?”, destaca a pesquisadora da UFSM.
Proteção ao Pampa
É urgente a necessidade de preservar o bioma do Pampa. De acordo com dados do Mapbiomas, o Pampa foi o bioma brasileiro que mais perdeu vegetação nativa entre 1985 e 2021, proporcionalmente. Nesse período, 3,4 milhões de hectares de diversos tipos de campos foram convertidos para a agricultura e silvicultura, resultando em uma perda de 29,5% da vegetação.
Entre os diferentes tipos de vegetação no Pampa, as áreas campestres foram as mais impactadas, perdendo 36% de cobertura entre 1985 e 2021, principalmente para dar lugar às monoculturas.
Quase metade do bioma já está ocupada pelo homem, sendo 41,6% destinados apenas à agricultura. O plantio de madeiras para exploração, como eucalipto e pinus, também tem avançado nas últimas décadas.
“A soja e a silvicultura comercial entraram muito forte nesses últimos quatro anos. A gente está perdendo campo nativo e o gato-palheiro precisa do campo nativo”, alerta Ana Rovedder.
A pesquisadora também destaca uma proposta de alteração no zoneamento ambiental para a atividade da silvicultura, que pode resultar em um aumento significativo da área de floresta plantada de eucalipto sobre os campos nativos. Essa proposta está em discussão na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
O zoólogo Fábio Mazim ressalta que o Pampa, e os campos em geral, são frequentemente ignorados e têm muito menos destaque na agenda de conservação em comparação com as florestas. “Outro problema, ele [o gato-palheiro] está num habitat, que é o campo, sobre um solo totalmente fértil, que é o solo pampeano. Tanto no sul do Rio Grande do Sul, quanto no Uruguai e no pedacinho que ele ocorre no oeste argentino, e está sendo convertido em lavoura”, acrescenta.
O Pampa é tão pouco protegido que todos os registros anteriores conhecidos do gato-palheiro-do-pampa foram feitos em áreas particulares. Em outubro do ano passado, a espécie foi avistada em uma vinícola na região da Campanha Gaúcha, mais ao sul do estado.
Recentemente, um artigo científico na Biota Neotropica divulgou o registro inédito de um gato-palheiro-do-pampa melânico, totalmente preto, feito em julho de 2021, numa área rural do município de Rosário do Sul.
O monitoramento de fauna realizado pelo RestauraPampa também está atento a outra ameaça ao gato-palheiro: as espécies exóticas invasoras. Além dos javalis, que invadem cada vez mais áreas no Brasil, os cervos conhecidos como chital (Axis axis), nativos das florestas asiáticas.
Para além da competição por recursos, a presença dessas espécies invasoras representa um desequilíbrio nos ecossistemas nativos e ameaça as espécies originárias, como o gato-palheiro.
Fonte: ((o))eco
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