Há cerca de 12 mil anos, nossos ancestrais davam os primeiros passos na agricultura, iniciando um processo que iria transformar definitivamente o estilo de vida das populações humanas. O surgimento das plantações resultou em um novo paradigma de relacionamento com a terra, e deu ensejo ao surgimento de tecnologias que permitiram a seleção das melhores culturas e o crescimento da produção, até alcançar o ponto de alimentar comunidades inteiras e, mais tarde, organizar um mercado de bens alimentícios. O impacto sobre algumas espécies, na forma do grande número de alterações a que foram submetidas ao longo de milênios, foi tamanho, que, embora fossem originalmente selvagens, hoje plantas como o milho e o arroz dependem da ação humana para seguirem existindo.
Mas o Homo sapiens não é a única espécie a recorrer à agricultura para expandir suas chances de vida neste planeta, e nem sequer a primeira. Há mais de 8 milhões de anos, formigas do gênero Atta, das quais a mais popular é a Saúva, já dominavam a arte da agricultura, e desenvolveram técnicas que em muito se assemelham às nossas. Elas chegaram até mesmo a domesticar determinadas espécies de fungos que, hoje, não são mais capazes de sobreviver fora das colônias de formigas.
Assim como os humanos que passaram a cultivar seus alimentos, as formigas passaram a cultivar fungos. Porém essa interação ganhou uma dinâmica denominada de mutualismo. Nela, os insetos dependem dos fungos para se alimentar e sobreviver e, por outro lado, os fungos também dependem dos insetos para obter sua alimentação, e para se propagar.
Embora a existência destas relações entre formigas e fungos seja conhecida há várias décadas, pouco se sabe sobre a variedade das espécies que estão envolvidas, e sobre as interações específicas que se estabelecem. “Por muito tempo, a comunidade científica acreditava que as formigas cultivariam apenas uma espécie de fungo”, diz André Rodrigues, docente do Departamento de Biologia Geral e Aplicada no Instituto de Biociências da Unesp, campus de Rio Claro. “O problema é que os primeiros estudos se concentravam nas formigas, não nos fungos”, diz.
Quando, num passo posterior, os pesquisadores mudaram o foco e passaram a observar os fungos, perceberam que diferentes espécies de formigas agricultoras podem cultivar fungos distintos. “Hoje sabemos que uma colônia de formigas agricultoras abriga também, além do fungo que é cultivado por elas, vários outros microrganismos que também são simbiontes e que desempenham outras funções naquele contexto”, diz o pesquisador.
Com o objetivo de entender melhor as interações entre populações de formigas e os fungos que elas cultivam, Rodrigues coordena o Projeto Temático Fapesp “Pesquisa colaborativa: Dimensions US-São Paulo: integrando filogenia, genética e ecologia química para desvendar a emaranhada simbiose multipartida das formigas cultivadoras de fungos”. O projeto é realizado em parceria com a Universidade de Utah, a Universidade Emory, a Universidade de Wisconsin e o Museu Nacional de História Natural, todas instituições dos Estados Unidos.
A pesquisa está inserida no programa Dimensions of Biodiversity, promovida pela agência de financiamento National Science Foundation (NSF), dos EUA, que visa incentivar a pesquisa em biodiversidade e elucidar os mistérios que ainda permeiam o campo. O programa é um acordo de cooperação internacional entre instituições dos Estados Unidos e de outros países do globo, incluindo o Brasil, por meio da Fapesp, e tem como objetivo “transformar o modo como descrevemos e entendemos o papel da vida na Terra”.
A erva daninha das formigas
A maior parte das formigas agricultoras cultiva fungos da família Agaricaceae, que são parentes distantes do conhecido cogumelo Champignon. Para isso, constroem no interior do formigueiro um complexo conhecido como “jardim”, e lá os fungos cultivados formam grandes estruturas que são mantidas pelas operárias.
O trabalho dos insetos acontece primeiro em uma etapa externa, em que passeiam ao ar livre em busca de vegetação e matéria orgânica para servirem de alimento para a “plantação”. Depois, na etapa interna, o material coletado é trazido para o formigueiro e depositado no jardim, para que o fungo possa se alimentar e se desenvolver.
Rodrigues conta que a complexidade das interações só começou a ser melhor explorada a partir de 1999, quando cientistas descobriram que, de maneira colateral, um outro fungo também estava se desenvolvendo nos jardins. “Assim como na agricultura humana vemos outros organismos se beneficiarem do nosso cultivo, como no caso das ervas daninhas, percebeu-se que outros organismos cresciam no jardim”, conta.
Entre esses organismos que se beneficiam da existência do jardim estão os fungos do gênero Escovopsis. O nome “Escovopsis” aglutina o latim “esco”, de “escova”, e o grego “psis”, que significa “semelhante a”. Assim, a palavra faz referência à semelhança do formato do fungo com uma escova.
A equipe liderada por Rodrigues tem buscado entender as interações que o Escovopsis estabelece com o restante do ecossistema existente nos jardins. Em 1999, quando o microrganismo foi descoberto, sugeriu-se que se tratava de um parasita que se alimentava dos fungos que servem de alimento para as formigas. “Ou seja, acreditava-se que era um fungo que comia outro fungo, em uma relação de parasitismo, enquanto se mantém a relação de mutualismo entre as formigas e os fungos Agaricaceae”, diz Rodrigues.
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Entretanto, no mundo inteiro as pesquisas sobre o Escovopsis encontraram uma barreira: seu foco estava sobre os efeitos que o fungo invasor gerava sobre a colônia, mas não buscavam aprofundar o conhecimento sobre a espécie ou o gênero a que pertence o Escovopsis. “Havia muita preocupação para descobrir o que o fungo fazia, mas ninguém se preocupou em saber quem era ele”, diz o docente.
O grupo multidisciplinar coordenado por Rodrigues, que inclui entomologistas, biólogos moleculares, micologistas e ecólogos, tem conduzido trabalhos de coleta e de taxonomia para identificar os fungos que também se desenvolvem nos jardins das colônias. “Começamos a realizar coletas em campo para observar a diversidade desses organismos. E já são mais de 15 anos montando uma coleção só com os fungos que se desenvolvem nas colônias das formigas agricultoras”, diz Rodrigues.
A equipe já realizou coletas em diversos biomas, especialmente nas florestas tropicais da América Central, da Amazônia e da Mata Atlântica. O material coletado é submetido a uma análise taxonômica a fim de identificar, classificar e descrever os diferentes seres em grupos.
Ao longo das investigações, os pesquisadores conceberam técnicas para padronizar as análises, a fim de assegurar maior qualidade à identificação das espécies de fungo feitas por laboratórios ao redor do mundo. “O trabalho de taxonomia é muito importante porque ajuda a conhecer a diversidade de espécies desse grupo. Mas é preciso padronização para assegurar que qualquer pesquisador que faça a taxonomia obtenha resultados que possam ser comparados aos de outros pesquisadores. Até recentemente, cada pesquisa que tinha o Escovopsis como foco estudava o fungo em condições diferentes de cultivo”, diz Rodrigues.
A proposta apresentada pela equipe envolve observar certas características macroscópicas dos Escovopsis, tais como sua coloração, a velocidade de crescimento e a maneira como o fungo se desenvolve, combinadas com a análise de características microscópicas e sequenciamento de seu DNA. “Além das características macro e microscópicas, também propusemos os meios ideais de cultivo para a identificação de Escovopsis. Os fungos tendem a apresentar características diferentes se forem cultivados em meios, temperaturas ou nutrientes diferentes, então analisamos o quanto o Escovopsis muda em meios de cultura diferentes”, diz. A ideia de padronização e a taxonomia foi descrita no artigo “Taxonomy and systematics of the fungus-growing ant associate Escovopsis (Hypocreaceae)”, publicado no ano passado na revista científica Studies in Mycology.
Na mesma publicação, o grupo descreveu 13 novas espécies de Escovopsis. “Ao todo, nosso grupo já caracterizou 15 espécies de Escovopsis. Isso equivale a mais da metade das 25 espécies conhecidas hoje. E também conseguimos identificar dois novos gêneros”, relata Rodrigues. No entanto, o universo dos fungos continua misterioso: estima-se que 95% das espécies que existem no planeta permaneçam desconhecidas. A fim de reverter esse quadro, os trabalhos de taxonomia são essenciais. “Para conhecer a biodiversidade de fungos e entender como se comportam, é essencial estudar ambientes que ainda não foram explorados, como é o caso das colônias de formigas agricultoras”, diz.
Os avanços na identificação permitiram ao grupo constatar que nem todos os Escovopsis se comportam da mesma maneira. Enquanto algumas espécies são, de fato, parasitas, a maioria não se alimenta do fungo cultivado pelas formigas. Em uma publicação anterior, o grupo observou que os Escovopsis se desenvolviam ao redor dos fungos das espécies cultivadas, porém evitavam contato direto. “Isso provavelmente ocorre porque o fungo cultivado pelas formigas produz uma substância fungicida para se proteger, o que impede que o Escovopsis avance sobre ele”, diz o pesquisador.
Por conta dessa característica, na maior parte dos casos a relação estabelecida não pode ser chamada de parasitismo. “Como anteriormente não havia descrições das espécies de Escovopsis, a maior parte das pesquisas se debruçou sobre uma mesma espécie, que é a mais comum, e é parasita. Mas isso não quer dizer que todos os Escovopsis seguem esse modo de vida. O estudo ajudou a mostrar que algumas linhagens podem ser oportunistas”, explica o pesquisador. Ou seja, algumas espécies de Escovopsis não matam o fungo cultivado, e é possível que elas aproveitem o alimento que existe nos “jardins” para conseguirem se desenvolver em paralelo.
Devido à possibilidade dessa diversidade de modos de comportamento, Rodrigues vê a necessidade de conduzir mais estudos envolvendo as diferentes espécies de Escovopsis, a fim de compreender melhor o parasitismo exibido por algumas delas.
Das formigas para os plásticos
Em outra empreitada do projeto, o grupo de pesquisa percebeu que a maneira como os “jardins” das formigas digerem o alimento neles depositado envolve mecanismos que são semelhantes aqueles empregados por certos microrganismos conhecidos por sua capacidade de degradar plástico na natureza. Partindo dessa percepção, uma das linhas de pesquisa atualmente em desenvolvimento envolve testar de que maneira os fungos cultivados, e outros microrganismos presentes nos jardins, podem ser aplicados em processos de degradação de plástico.
“Diversos grupos de pesquisa têm investigado microrganismos associados a insetos herbívoros na busca de potenciais degradadores de plástico. Uma das premissas dessa busca é que o tecido vegetal degradado por esses microrganismos é de difícil digestão, mas a comunidade microbiana do jardim mescla enzimas e outros mecanismos químicos que permitem a quebra deste material e, curiosamente, processos semelhantes ocorrem em microrganismos que degradam plásticos”, diz Mariana Barcoto, que está abordando a questão em sua pesquisa de doutorado sob orientação de Rodrigues. Segundo os pesquisadores, certos tecidos vegetais apresentam características bioquímicas que são parecidas com aquelas encontradas em plásticos, o que torna ambos suscetíveis às enzimas e aos mecanismos químicos das comunidades microbianas. Por conta dessa semelhança na composição, o processo utilizado para a degradação do tecido vegetal poderia ser aproveitado para outras aplicações.
Alguns projetos no laboratório estão se dedicando a esse campo de pesquisa recente, focando a capacidade dos microrganismos do jardim a utilizarem plástico do tipo PET como alimento. “Queremos avaliar a possibilidade de o jardim das formigas cultivadoras de fungos servir como uma fonte de microrganismos que possa ser empregada, no futuro, para diminuir o impacto dos plásticos no meio ambiente”, diz Rodrigues.
Fonte: Jornal da Unesp
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