Acuado no alto de uma árvore alta, um solitário Tuiuiú lutava para manter a salvo três ovos em seu ninho. Ao seu redor, abundantes destroços de vegetação, tostados pelos focos de incêndio intermitentes que varrem o Pantanal desde 1º de janeiro. A situação de aflição e de solidão da ave causou estranhamento em um fotógrafo que percorria o Pantanal nos arredores de Corumbá, MS, no último dia 30 de junho. Em condições normais o Tuiuiú é mais gregário, conhecido por fazer ninhos em grupos de até seis indivíduos, e às vezes até em companhia de garças e de outras aves.
No dia seguinte, o fotógrafo voltou à mesma região e buscou novamente o ninho. No lugar da árvore que servia de refúgio para o pássaro, saudado como um símbolo vivo do Pantanal, encontrou apenas restos. A fotografia deste momento serve como uma representação viva da tragédia que a fauna e a flora pantaneira voltaram a vivenciar em 2024, quatro anos após o bioma ter registrado um recorde de fogo e de destruição.
Em uma pesquisa recente, publicada na revista científica Wetlands, um grupo de pesquisadores da Unesp identificou, nas mudanças do uso da terra ocasionadas pela expansão do agronegócio pelo Cerrado, um dos possíveis fatores que respondem pela intensificação dos incêndios em terras pantaneiras. Intitulado Fires in Pantanal: The link to Agriculture, Conversions in Cerrado, and Hydrological Changes, o artigo analisa as mudanças observadas no Cerrado e no Pantanal ao longo de duas décadas, entre 2000 e 2020. Segundo os estudiosos, a conversão das terras do Cerrado para a atividade agropecuária tem resultado no acúmulo de sedimentos dos rios da região. Alguns desses corpos hídricos se propagam até o Pantanal, e têm lá suas águas drenadas. Porém, a presença dos sedimentos que são transportados impede que a água chegue às planícies alagáveis com a mesma intensidade. O resultado é um ambiente mais seco, e consequentemente mais propenso a incêndios.
Desde o começo deste ano, os incêndios atingiram mais de 1,3 milhão de hectares do Pantanal, segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ). Informações do projeto MapBiomas apontam que a área queimada no primeiro semestre de 2024 aumentou 529% em relação à média dos anos anteriores, cravando um novo recorde de destruição.
O fogo ocorre de maneira natural no ambiente. No passado, povos indígenas, pantaneiros e outras comunidades tradicionais empregavam o uso de queimadas, iniciadas deliberadamente, com objetivos como o manejo e a renovação dos pastos. O cenário hoje, no entanto, é de um avanço descontrolado das chamas.
Parte das causas para esse descontrole está nas mudanças ocorridas nas dinâmicas da região. Marcado como a maior área úmida continental do planeta, o Pantanal tem como característica as inundações periódicas que ocorrem durante a estação úmida, de outubro a março. Durante esse processo, o ambiente acumula matéria orgânica. Nos períodos de seca, entre os meses de abril e setembro, essa massa acumulada serve como combustível para o fogo deflagrado por humanos. Esse efeito, entretanto, é intensificado em anos de secas mais severas, e a hipótese é que essa intensificação leve aos picos de incêndios observados em 2020 e 2024.
Segundo estudo divulgado pelo MapBiomas em 2024, o Pantanal tem se tornado uma região cada vez mais seca, em virtude de diversos fatores. Em 2023, os níveis de água e precipitação estavam 61% abaixo da média histórica. Seguindo a tendência, o ano de 2024 foi o que registrou menos chuvas desde 2020, o que também contribuiu para as condições de seca extrema.
O equilíbrio de um bioma e dos ecossistemas nele presentes depende de uma miríade de interações que, muitas vezes, fogem do senso comum. Enquanto a diminuição de chuvas e aumento das secas marca uma relação imediata e lógica, a busca de outros mecanismos que interferem nos incêndios do Pantanal revelou conexões menos evidentes.
Nesse sentido, foi com surpresa que a pesquisadora Klécia Gili Massi, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp (ICT-Unesp), campus São José dos Campos, descobriu que existiam hipóteses sobre uma possível relação entre o uso de solo no Cerrado para o agronegócio e as queimadas no Pantanal. Sem encontrar pesquisas que corroborassem a ideia naquele momento, a engenheira florestal aproveitou o interesse da mestranda Fabrícia Cristina Santos e os conhecimentos em sensoriamento remoto do seu colega Rogério Galante Negri, também pesquisador do ICT-Unesp e orientador da estudante, para verificar se esses acontecimentos estavam, de fato, conectados de alguma forma.
Os rios levam terra do Cerrado para o Pantanal
Para o estudo, o grupo olhou para as sub-bacias hidrográficas de Itiquira, Taquari e Negro de Mato Grosso do Sul. Todas as três contam com rios que vão do Cerrado ao Pantanal e, por isso, foram consideradas boas candidatas. Com a observação da dinâmica das águas, poderia ser possível encontrar uma das peças que influenciam nas secas em regiões pantaneiras.
Em 2023, o Cerrado foi o bioma mais desmatado do país, principalmente devido à expansão das atividades de agropecuária. É o que aponta o Relatório Anual do Desmatamento do Brasil (RAD), que também é produzido pelo projeto MapBiomas. Segundo Massi, quando o solo é revolvido para fins de pecuária, ou para a prática da agricultura em larga escala, ele fica exposto à erosão, que muitas vezes ocorre por conta da ação dos ventos ou da chuva. A situação é agravada quando se fala de lavouras anuais, como é o caso da soja – que, em 2022, ocupava 10% do bioma.
“Esse tipo de cultivo obriga que em um período de tempo muito curto, de um ano, o solo seja muito revolvido. Tanto no momento do plantio propriamente dito, como também antes, no preparo da terra e, depois, na etapa da colheita. O que ocorre não é apenas a retirada da vegetação nativa, mas também a perda de um solo que demorou milhões de anos para se formar”, diz a professora.
A erosão faz com que o sedimento, que antes estava fixo em um determinado local, seja deslocado no espaço, e eventualmente alcance algum corpo d’água, como um rio. A chegada do sedimento irá afetar o tamanho do rio e o fluxo da água, em um processo conhecido como assoreamento. O processo de assoreamento, acumulado ao longo dos anos, reduz a quantidade de água transportada pelos rios. “O Pantanal é uma planície alagável. Na época das cheias, os rios transbordam e alagam tudo. Quando ocorre o acúmulo de terra dentro do corpo hídrico, áreas que antes eram alagáveis começam a formar bancos de terra. Isso faz com que a água já não consiga ultrapassar esse limite, e fique ali represada”, explica Massi.
O represamento faz com que regiões que antes eram completamente tomadas pela água permaneçam secas ou não recebam umidade suficiente. Esse é um fator crítico para que, em momentos de secas extremas, o fogo alcance grandes proporções: antes úmido, o Pantanal passa a ser um meio seco e com muito acúmulo de matéria orgânica.
A pesquisa foi feita usando dados de sensoriamento remoto dos últimos 20 anos, entre 2000 e 2020. Nesse intervalo de tempo, o grupo coletou três informações centrais: a primeira, relacionada à conversão e uso do solo no Cerrado, para ver de que maneira evoluiu a atividade agropecuária na região; outro dado foram os focos de incêndio – o grupo identificou quatro picos dentro do intervalo analisado, em 2001, 2005, 2012 e 2020; por fim, a última informação que deveria ser coletada era relacionada aos corpos hídricos.
Partindo do conhecimento de que o assoreamento torna os rios mais estreitos, os pesquisadores empregaram as imagens geradas por satélite das três bacias estudadas a fim de monitorar as alterações. E constataram mudanças ao longo do período. Os rios do Pantanal reduziram de tamanho entre 2000 e 2001, se mantiveram estáveis até 2013, passaram por um aumento até 2015 e, depois, voltaram a diminuir até o final de 2020.
O fogo não é o inimigo
A pesquisadora defende que uma possível solução para controlar os incêndios no Pantanal seria voltar a manejar o fogo com técnicas semelhantes às utilizadas por pantaneiros e outras comunidades tradicionais da região. Historicamente, essas populações usavam o fogo de maneira controlada e em pequenas áreas, tanto como forma de incentivar a renovação da vegetação, como também para eliminar parte da matéria orgânica acumulada – o que evitava grandes incêndios. “Isso passa por pensar formas para usar o fogo a nosso favor em um ecossistema onde ele ocorria naturalmente e que têm adaptações para isso; as plantas do Pantanal têm grande capacidade de rebrota, armazenam muita água e têm cascas grossas; os animais conseguiam evitar as regiões das queimadas, porque elas aconteciam em áreas menores e duravam menos tempo”, afirma.
Seguindo essa linha, em 31 de julho deste ano, foi sancionada a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, cuja proposta foi motivada pelos incêndios no Pantanal. Entre as diferentes medidas, a nova lei objetiva controlar o uso do fogo, permitindo sua utilização de maneira prescrita como forma de manutenção da biodiversidade de ecossistemas associados ao fogo.
Ao contrário de um incêndio, que ocorre por tempo indeterminado, de maneira descontrolada e destrutiva, as queimadas prescritas têm dia, hora e condições específicas para acontecer. O objetivo delas é queimar o excesso de matéria orgânica, como folhas, galhos e outros materiais secos que, se deixados no ambiente, funcionam como combustível para os incêndios. Um exemplo desse tipo de controle é o fogo frio, tradicionalmente feito por indígenas, que são queimadas realizadas em pequenas extensões e regiões específicas, quando a umidade do solo ainda é relativamente alta, o que evita que o fogo se espalhe.
Agroindústria é um entre vários fatores
“É importante destacar que não existe uma relação direta de causa e efeito entre o agronegócio e as queimadas no Pantanal. A conversão do uso da terra é apenas um fator entre muitos outros, como os aumentos dos eventos climáticos extremos, que têm afetado a intensidade dos fogos no Pantanal”, ressalta a docente.
Ela enfatiza a importância de que a sociedade civil e os gestores sejam providos de informações sobre a ação desses múltiplos fatores e os impactos que ocasionam no ambiente, para que sejam desenhadas políticas públicas adequadas. “Nós vemos, por exemplo, projetos como o Plano Safra que investem milhões de reais para o financiamento de grandes empreendimentos agrícolas. É preciso saber como balancear essa produção, evitando medidas muito danosas para os ecossistemas. Para isso, dados como esses que estamos apresentando são extremamente necessários”, analisa.
Em julho deste ano, o Governo Federal lançou o Plano Safra 24/25 que irá destinar R$ 400,59 bilhões para agricultura empresarial. Em nível de comparação, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Petrobras destinaram R$ 42 milhões para projetos de restauração ecológica no Cerrado e no Pantanal, em editais da iniciativa Floresta Viva, encerrados em março deste ano. “As coisas estão acontecendo todas ao mesmo tempo: os efeitos das mudanças climáticas, a expansão das formas industriais de manejo das áreas, as alterações no regime do fogo. E todas precisam ser amplamente estudadas”, diz Massi.
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