A humanidade enfrenta uma série de crises ambientais interligadas, sendo as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade as mais urgentes. Essa crise dupla tem suas raízes em uma desconexão histórica com a natureza, agravada por concepções equivocadas sobre a evolução biológica, especialmente no que tange à nossa própria espécie. Essa distorção contribui para uma compreensão inadequada da importância da natureza para o bem-estar humano, culminando na crise ambiental atual.
Ao refletir sobre a evolução do Homo sapiens, é comum recorrermos à imagem clássica de uma linha evolutiva, onde um “macaco” se transforma gradualmente em um humano. Não é de se estranhar que, ao buscar “evolução humana” no Google, essa imagem ultrapassada seja recorrente, refletindo uma percepção errônea sobre a dinâmica e o ritmo da evolução.
A crença de que a evolução segue um caminho de “progresso” contínuo, levando a organismos mais complexos ou superiores, está na raiz dessa visão equivocada. No entanto, esse entendimento simplista ignora a verdadeira natureza do processo evolutivo.
A evolução é um processo diversificado e contingente, sem direção predeterminada. Características como a multicelularidade ou o bipedalismo humano são frequentemente vistas como avanços, mas isso não significa que a evolução siga uma trajetória linear rumo à complexidade crescente.
Muitos organismos, em resposta às pressões ambientais, perdem estruturas ou se simplificam. Por exemplo, parasitas que perderam os olhos ou pinguins que abandonaram a capacidade de voar. A evolução não busca necessariamente o “mais complexo” ou o “mais avançado”, mas adaptações que melhor respondam às condições ambientais em constante mudança, gerando uma diversidade de formas.
Além disso, a complexidade é um conceito relativo, que varia de acordo com o contexto. O que representa um avanço para uma espécie pode não ser para outra. Por exemplo, enquanto o voo foi uma grande adaptação para certas aves, a perda dessa habilidade foi vantajosa para os pinguins, que desenvolveram outras adaptações para seu ambiente aquático.
Todas as espécies existentes hoje são igualmente evoluídas, cada uma ajustada ao seu próprio nicho ecológico. A evolução ocorre de forma fragmentada, onde diferentes características evoluem em ritmos distintos, sem um “ápice” final na escala evolutiva.
Vale destacar que algumas adaptações surgiram há milênios e se consolidaram por razões diversas. As penas das aves, por exemplo, inicialmente proporcionaram vantagens na termorregulação, antes de se tornarem fundamentais para o voo. Essas adaptações, conhecidas como exaptações (termo introduzido por Elizabeth Vrba), mostram que a evolução é um processo de diversificação, e não de progresso linear ao longo do tempo.
A ideia de que os humanos ocupam o “topo” da evolução reflete uma visão antropocêntrica equivocada, que distorce a realidade e gera uma série de problemas sociais, como o racismo, além de prejudicar nosso bem-estar ao ignorar nossa dependência da natureza. Essa concepção compromete a nossa capacidade de coexistir com outras formas de vida.
A evolução não é uma escada de progresso, mas sim uma árvore ramificada, onde cada espécie representa um ramo que resulta de processos adaptativos e mudanças conforme suas circunstâncias específicas. Nós, seres humanos, somos apenas um desses muitos ramos, e a diversidade da vida na Terra é uma prova da complexidade e imprevisibilidade do processo evolutivo.
Stephen Jay Gould (2001), em seu livro “Lance de Dados”, critica essa noção de que a evolução humana seja fruto de um progresso inevitável:
“Se não passamos de um pequeno galho no florido e arborescente arbusto da vida, e se o nosso galho se separou há apenas um momento geológico, então talvez não sejamos o resultado previsível de um processo inerentemente progressivo (a orgulhosa tendência da história da vida na direção do progresso); talvez sejamos, não importa nossas glórias e conquistas, um acidente cósmico momentâneo, que nunca surgiria novamente se a árvore da vida pudesse ser replantada a partir da semente é criada novamente sob condições similares” (Gould, 2001, p. 35).
A falta de entendimento sobre a biologia evolutiva tem consequências profundas na maneira como tratamos, e frequentemente degradamos, o meio ambiente e a biodiversidade. A crença de que os seres humanos estão no “ápice” da evolução nos leva a nos posicionarmos como superiores e dominantes sobre as outras formas de vida.
Esse equívoco reforça uma visão utilitarista e antropocêntrica, frequentemente sustentada por concepções teológicas, que vê a natureza como um recurso infinito a ser explorado em benefício exclusivo da humanidade. Essa distorção alimenta práticas insustentáveis de exploração, promovendo a destruição de habitats, a extinção de espécies e a degradação dos ecossistemas.
Ao desconsiderar que todas as espécies são “igualmente evoluídas” e que a evolução é um processo de diversificação, perdemos de vista o valor intrínseco da vida e os serviços ecossistêmicos fundamentais que a biodiversidade nos oferece.
Outro conceito equivocado que contribui para essa perspectiva é a ideia de que a seleção natural sempre resulta em adaptações perfeitas e que os organismos estão perfeitamente ajustados aos seus ambientes. No entanto, a seleção natural não é um processo direcionado, e não cria organismos totalmente ajustados a um ambiente estático.
As características evolutivas carregam vantagens e desvantagens relativas, que se moldam a ambientes em constante mudança, e são também limitadas pela história evolutiva de cada organismo. Além disso, nem todas as características resultantes da evolução são adaptações diretas; algumas são subprodutos de outros traços ou eventos históricos.
Em 1979, os pesquisadores Stephen Jay Gould e Richard Lewontin destacaram essa questão em um artigo influente, utilizando uma analogia entre a arquitetura e a biologia com os tímpanos (spandrels) da Catedral de São Marcos. Eles argumentaram que, assim como esses elementos arquitetônicos são subprodutos inevitáveis da interseção de arcos e foram posteriormente decorados com mosaicos, algumas características biológicas também surgem como subprodutos de restrições estruturais, históricas ou por acaso, como a deriva genética, e não necessariamente por pressão adaptativa direta.
Essa perspectiva mais ampla nos ajuda a entender que a evolução é complexa, diversificada e contingente, reforçando a necessidade de revermos nosso lugar no mundo natural e a forma como interagimos com a biodiversidade que nos sustenta.
Neste artigo, Gould e Lewontin sugerem que nem todas as características dos organismos são resultado de adaptação ao ambiente, como a teoria evolutiva mais tradicional dos anos de 1950-1950 (que eles chamam de “programa adaptacionista”) muitas vezes assumia.
Os spandrels da Catedral de São Marcos são o resultado de decisões arquitetônicas, não intencionadas originalmente para se tornarem obras de arte. A analogia proposta por Gould e Lewontin é que algumas características biológicas surgem de processos não-adaptativos, como restrições estruturais ou históricas, sem desempenharem um papel direto na sobrevivência ou reprodução das espécies.
Um exemplo disso é o cóccix nos humanos modernos, que não é um produto de adaptação, mas um vestígio de nossa história evolutiva. Ele é o resquício de uma cauda ancestral, herdada de nossos antepassados mamíferos, que perdeu sua função original, mas persiste como traço histórico.
A seleção natural, um dos mecanismos da evolução biológica, age sobre a variação genética herdável em uma população. Quando indivíduos possuem características que aumentam suas chances de sobrevivência e reprodução, essas características tendem a se tornar mais comuns ao longo das gerações.
Entretanto, a seleção natural não resulta necessariamente em adaptações perfeitas. A evolução também é moldada por fatores como mutações, deriva genética (que refere-se às mudanças aleatórias nas frequências gênicas de uma população ao longo do tempo, sem relação direta com a seleção natural) e migração. Esses processos aleatórios demonstram que a perfeição na natureza é um mito que precisa ser desmistificado.
A compreensão adequada da teoria evolutiva revela que a sobrevivência humana está diretamente vinculada à saúde do planeta e à preservação da biodiversidade. O conceito de “Saúde Única” (One Health) reflete essa interconexão e tem ganhado importância globalmente.
Cada espécie, por mais “simples” ou “menos evoluída” que possa parecer, desempenha um papel fundamental na teia da vida e na manutenção dos processos ecossistêmicos, como os ciclos do carbono e da água. Ao conhecer, mapear e conservar a biodiversidade, aumentamos nossas chances de enfrentar crises como a emergência climática.
A comunicação eficaz com a sociedade e a educação sobre evolução biológica, tanto em espaços formais quanto informais, são cruciais para combater o negacionismo científico e promover uma relação mais sustentável com o meio ambiente. Sensibilizar o público sobre o significado da evolução e sua importância para a vida no planeta é fundamental.
Reconhecer que a evolução é um processo de mudança não-linear e sem direção pré-estabelecida nos ajuda a valorizar cada forma de vida como única e indispensável. Somente assim poderemos avançar para um futuro onde a conservação da biodiversidade seja vista como essencial para todas as formas de vida, e não apenas como uma escolha altruísta ou econômica. A qualidade de vida das gerações atuais e futuras, assim como a sobrevivência das outras espécies com as quais compartilhamos a Terra, depende disso.
Referências:
Gould, S. J. (2001). Lance de Dados. Editora Record.
Gould, S. J., & Lewontin, R. C. (1979). The spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: a critique of the adaptationist programme. Conceptual Issues in Evolutionary Biology, 205, 79.
Fonte: ((o))eco
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