Na última segunda-feira, dia 16 de setembro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) registrou mais de dois mil focos de incêndio em todo o território brasileiro, um cenário que vem se estendendo há algumas semanas. Ao longo do último mês de agosto, os satélites do Instituto detectaram mais de 60 mil focos de queimadas no Brasil.
Antes que as queimadas se espalhassem pelo país, entretanto, já se verificava um gravíssimo cenário de seca, condição climática propícia para surgimento e alastramento do fogo. Na realidade, este é o pior cenário de seca desde 1950, segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), órgão ligado ao MCTI. que avalia mensalmente a condição de estiagem no país por meio de um índice que considera o déficit de chuvas, o déficit de umidade do solo e a secura da vegetação.
Para o metereologista Luiz Felippe Gozzo, professor do Departamento de Física e Meteorologia da Unesp, no câmpus de Bauru, a seca severa, que ocorre principalmente na região central do país, chama a atenção dos especialistas por sua intensidade inédita, mas também pelo fato de ocorrer logo após outro período de seca em 2023. Se no ano passado o Cemaden apontou que 30% das cidades brasileiras apresentaram pelo menos um mês em condição de seca severa, extrema ou excepcional, neste ano 70% dos municípios enfrentam alguma condição de seca. E o cenário podendo piorar em virtude do atraso da estação chuvosa em boa parte do Brasil.
“Esse não é um cenário inesperado. Há muito tempo, vemos nas projeções climáticas que a situação de mudança climática e aquecimento global iria levar a eventos extremos mais frequentes e mais intensos”, diz o pesquisador do Centro de Meteorologia de Bauru (IPMet), que é estudioso da área de secas e eventos extremos, e desde 2018 investiga as secas no Estado de São Paulo.
Em entrevista ao Jornal da Unesp, o meteorologista explica os diferentes fenômenos que colaboram para o agravamento da estiagem deste ano, e apresenta as expectativas futuras para o território brasileiro. A preocupação é que as consequências das mudanças climáticas estejam chegando antes do previsto. “Não estamos tão surpresos por quê isso está acontecendo, mas sim por quê já está acontecendo”, diz.
Órgãos responsáveis pelo monitoramento do clima no país têm apontado uma situação preocupante de seca. Quais aspectos deste evento têm chamado a atenção da comunidade científica?
Luiz Felippe Gozzo: A seca que estamos atravessando chamou a atenção da comunidade porque é algo um pouco excepcional. É a seca mais intensa e mais abrangente, ou seja, de maior área, a afetar o Brasil desde 1950. O Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), órgão ligado ao MCTI, fez um levantamento publicado na semana passada que mostra que a estiagem está afetando cerca de 5 milhões de km2, com mais de 70% dos municípios do país em condição de seca, e uma seca com bastante intensidade. É algo que não é comum.
Quando observamos os gráficos publicados no levantamento, o que a gente nota é que, desde a década de 1990, o Brasil em geral apresenta uma tendência maior a estar mais seco. Houve picos importantes ao longo desse período. Por exemplo, em 1998 e em 2015 tivemos secas severas. Mas a deste ano é a mais forte, em termos de áreas, de dias sem chuva e de maior temperatura também.
O cenário que estamos vendo já havia sido antecipado pelas projeções? A comunidade científica esperava algo assim?
Luiz Felippe Gozzo: Esse não é um cenário inesperado. Nós vemos há muito tempo, nas projeções climáticas, que essa situação de mudança climática e aquecimento global iria levar a eventos extremos mais frequentes e mais intensos. É exatamente o que estamos vivendo na Amazônia, por exemplo. Se antes acontecia uma seca num dado ano, e levava uma década para que algo assim se repetisse, agora está demorando cinco anos. E, daqui a pouco, pode demorar apenas dois. E a intensidade também está aumentando, como já era previsto.
É bom explicar que as previsões apontam mais detalhes e só podem ser feitas em um prazo curto. Já a projeção é diferente. Ela aponta uma tendência mais geral do que vai acontecer em um futuro mais distante. Então é impossível que uma projeção indique, por exemplo, que em setembro de 2024 vamos passar por uma seca. Mas elas apontaram que haveria uma maior repetição de eventos de seca, e é o que a gente está observando.
Falamos da influência das mudanças climáticas nesse cenário, mas haveria outros elementos que também contribuem para essa seca? Quais seriam?
Luiz Felippe Gozzo: Nós temos algumas forçantes climáticas atuando para causar esse resultado. Por exemplo, o fenômeno La Niña. Estamos prestes a entrar em um período de um novo fenômeno de La Niña. Embora esse período ainda não tenha sido oficialmente declarado, a gente já está vendo sinais desse fenômeno sobre o Brasil.
Alguns estudos também mostram que, quando a água da superfície do mar do Atlântico Norte fica muito quente, há uma tendência a chover menos aqui no Brasil. E isso é o que está acontecendo agora. Isso está relacionado a outro fenômeno conhecido dos especialistas, chamado Oscilação Multidecadal do Atlântico, e que agora está na fase positiva. Acho que esse é um empurrão no cenário das mudanças climáticas. A água do mar nessa região nunca esteve tão quente por tanto tempo, e isso desfavorece a chuva nessa região do Brasil central.
Soma-se a isso a influência de um fenômeno chamado Oscilação de Madden e Julian (MJO), que é de uma velocidade mais rápida, um intervalo em torno de 30 a 40 dias, e neste período a chuva também fica desfavorecida. A MJO é como uma onda que ocorre na atmosfera e percorre o planeta inteiro a cada 40 ou 50 dias. Ela cruza o planeta na altura da linha do Equador e neste momento está em uma posição do planeta que desfavorece as chuvas em cima do Brasil. Embora ela esteja longe, sua atuação influencia o regime de chuvas por aqui porque estimula um movimento descendente do ar. E a chuva é favorecida quando o ar tende a subir, o que acaba formando nuvens e a precipitação. A MJO tende a dificultar a subida deste ar.
Quais são os cenários para o futuro? Vamos enfrentar novos períodos de seca dessa gravidade novamente em breve? O que os modelos climáticos estão mostrando?
Luiz Felippe Gozzo: O que temos visto é a tendência a uma maior frequência de eventos intensos, algo observado há muitos anos. Entre os climatologistas, comenta-se que a gente sempre usou projeções para 2050, 2080 até 2100. O que esperávamos que ocorresse naquele período já está acontecendo agora, estamos enxergando esse padrão agora. Mesmo se, magicamente, a humanidade de um dia para o outro conseguisse remover todo o carbono e todos os gases de efeito estufa da atmosfera, o cenário não voltaria ao que era antes. Agora não tem mais volta, vamos ter que conviver com esse cenário por muito tempo.
É importante ressaltar que não são apenas os extremos secos, mas também os extremos de chuva, como o que vimos no Rio Grande do Sul, no primeiro semestre, ou extremos de frio e extremos de calor. Tudo que é muito exagerado vai ser potencializado.
O climatologista Carlos Nobre publicou uma coluna nesta semana expressando pavor pelas temperaturas que vêm sendo registradas no planeta nos últimos anos e alertando para as graves consequências que isso pode trazer para a vida humana. Você compartilha desse sentimento?
Luiz Felippe Gozzo: Isso vem ao encontro do que nós climatologistas projetamos, e do que está acontecendo. Não estamos tão surpresos porque isso está acontecendo, mas sim porque já está acontecendo. As projeções eram sempre muito lá para frente, para décadas lá na frente. E se já está acontecendo agora, o que vai ser daqui a algumas décadas, percebe? A minha preocupação é nesse sentido.
Ao mesmo tempo você mencionou uma confluência de fenômenos no planeta que estão favorecendo esse cenário de seca extrema no Brasil. A expectativa é que essa confluência não vá necessariamente ocorrer novamente. Será que não estamos vivendo uma situação realmente excepcional?
Luiz Felippe Gozzo: Essa é uma colocação interessante, e que já abordei em outras entrevistas, mas é sempre importante pontuar. Eu, aqui e agora, não consigo dizer para você o quanto dessa seca que estamos atravessando se deve ao aquecimento global e à mudança climática e o quanto se deve a uma conjunção de outros fatores.
Existem estudos chamados de estudos de atribuição. Neles são empregadas técnicas estatísticas que permitem medir o quanto de um evento é atribuível à mudança climática e o quanto é decorrência desses outros fatores. Uma coisa tão intensa como agora possivelmente é uma casualidade, algo que acontece na atmosfera. Mas essa frequência maior, mesmo que em intensidades diferentes, vem sim das mudanças climáticas.
O Brasil é apontado como um dos países que mais irá sofrer com os impactos das mudanças climáticas nas próximas décadas. Como você vê as pesquisas em climatologia que podem embasar ações para enfrentar este cenário futuro?
Luiz Felippe Gozzo: Eu não trabalho com essa parte de mitigação e do enfrentamento às mudanças climáticas. Eu sou mais da parte física, que estuda as causas dos fenômenos. Mas, dentro do que acompanho, acho que dispomos de pesquisas em quantidade suficiente para podermos descrever, acompanhar e compreender o que está acontecendo no clima. Ou seja, o conhecimento não é o problema. O problema é o que fazer diante desse cenário. Isso é complicado, porque envolve um debate social e decisões políticas e econômicas.
Fonte: Jornal da Unesp
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