Desmatamento na Amazônia colapsa caça de subsistência e ameaça nutrição de 11 milhões

Pesquisa inédita na Nature mostra que degradação florestal reduz em 75% a captura de animais, empurrando comunidades tradicionais para a insegurança alimentar e ultraprocessados.

Na região amazônica, a alimentação de quase 11 milhões de pessoas – em sua maioria comunidades indígenas e tradicionais e pequenos agricultores – depende da caça. Mas esse modo de vida está ameaçado. Um estudo publicado nesta quarta-feira (26/11) na revista Nature mostra que, em áreas com mais de 70% de desmatamento acumulado, o número de animais caçados por pessoa caiu quase 75% ao longo de seis décadas. Segundo o artigo, cujo primeiro autor é o biólogo André Pinassi Antunes, da Rede de Pesquisa em Conservação, Uso e Manejo da Fauna da Amazônia (RedeFauna), e pesquisador colaborador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o desmatamento compromete um sistema alimentar que há milênios vem sustentando a saúde dessas populações e a biodiversidade da floresta.

Caça de subsistência
Os ungulados, como a queixada (Tayassu pecari) são os mais caçados. Tomás Tamagno

Conduzido por pesquisadores de mais de 40 instituições, o estudo é o primeiro a apresentar padrões em larga escala sobre como as mudanças ambientais afetam a caça praticada por povos tradicionais na Amazônia. A análise reúne registros coletados entre 1965 e 2024 sobre a captura de mamíferos, aves, répteis e anfíbios.

Há cerca de 2 milhões de caçadores rurais na Amazônia. Cada um deles abate, em média, um animal a cada duas semanas – aproximadamente 25 por ano –, o que corresponde anualmente a cerca de 345 quilos de carne. Esses caçadores são responsáveis por abastecer as populações rurais da região. “A floresta nutre as famílias amazônicas. Onde há caça, há floresta viva”, afirma Antunes.

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A caça varia conforme a região, refletindo diferenças culturais, ambientais e de disponibilidade da fauna. O levantamento registrou ao menos 490 espécies utilizadas como alimento. Os mamíferos são os mais capturados (66,5%), seguidos por aves (21,6%), répteis (11,2%) e anfíbios (0,006%). Entre os mamíferos, destacam-se os ungulados – animais com cascos, como a queixada. Em seguida vêm os grandes roedores e primatas. Também entram na lista iguanas e aves como jacus e mutuns, além de tatus, aves aquáticas, jabutis e quelônios aquáticos, embora em proporções menores.

A carne silvestre fornece proteína de fácil absorção, com todos os aminoácidos essenciais e micronutrientes, que muitas vezes não estão disponíveis em níveis adequados nos alimentos vegetais. O acesso à carne de caça está associado a melhores indicadores de saúde infantil, incluindo níveis mais altos de hemoglobina e maior ingestão de ferro e zinco. Isso é especialmente relevante para a região, onde a deficiência de micronutrientes é comum e se soma ao impacto de doenças como malária e parasitoses intestinais.

Rob Walker/iNaturalist CanaA carne de paca (Cuniculus paca), um roedor, é tida como muito saborosaRob Walker/iNaturalist Cana

No entanto, o estudo mostra que, em quase 500 mil quilômetros quadrados (km²) de áreas desmatadas, a produtividade da carne de caça caiu cerca de 67% nas últimas décadas. Isso não apenas compromete a alimentação de quem depende desses animais para sobreviver, como também ameaça um dos sistemas alimentares mais sustentáveis do planeta – e a própria biodiversidade da floresta. Em áreas mais degradadas ou próximas de centros urbanos, espécies grandes e sensíveis à pressão de caça – como macacos-aranha, guaribas e barrigudos – tornam-se raras, enquanto tatus, capivaras, jacus e pombos, mais resistentes e comuns em paisagens alteradas, são proporcionalmente mais consumidos do que em áreas preservadas

“Historicamente, essas populações construíram suas próprias maneiras de garantir a disponibilidade dessas espécies, porque dependem delas para sobreviver”, afirma a nutricionista Michelle Jacob, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), coautora do estudo. Essas estratégias de uso da fauna integram concepções de mundo baseadas em relações de reciprocidade com a floresta e seus seres, fundamentando regras culturais que contribuem para a manutenção do ciclo de vida da floresta.

À medida que a caça diminui, cresce a substituição por carnes domésticas mais baratas, como o frango, que oferecem menos ferro, proteína e vitaminas do que a carne silvestre. O resultado é uma alimentação menos nutritiva e uma floresta empobrecida em biodiversidade. “Além dos aspectos nutricionais, a introdução de outras espécies por qualquer iniciativa que parta de fora das próprias comunidades representa uma medida colonialista, que ameaça os costumes e tradições que, há séculos, ajudam a proteger a floresta”, avalia Antunes.

Essa substituição também tem impactos ambientais relevantes. Como a criação de gado é hoje o principal motor do desmatamento na Amazônia, responsável pela perda de 0,63 milhão de km² de floresta desde o fim da década de 1970, transferir para o gado a proteína obtida por meio da caça exigiria expandir ainda mais a fronteira agropecuária. O estudo publicado na Nature estima que seria necessária a conversão de 7.603 a 63.803 km² de floresta em pasto. Esse cenário, em território nacional, resultaria em emissões anuais equivalentes a até 3% das registradas no mundo todo.

Caça de subsistência

Jean-Philippe Boubli / Universidade de SalfordYanomami encenando caça durante festividade na aldeia Maturacá, no Amazonas, em 1994Jean-Philippe Boubli / Universidade de Salford

Com o avanço do desmatamento e da urbanização, os pesquisadores identificam dois processos que ajudam a explicar o declínio da caça tradicional: a redução da fauna, resultado direto da perda de hábitat, e a simplificação alimentar, quando a dieta se torna menos diversa e menos nutritiva. Esse efeito já é observado nas cidades brasileiras, onde o acesso à alimentação saudável é fortemente influenciado pela renda.

Um estudo coordenado pelo nutricionista Sávio Marcelino Gomes, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), publicado na Scientific Reports em 2023, constatou que apenas 1,3% dos brasileiros consome alimentos de alta biodiversidade, como plantas nativas, espécies não convencionais e carnes silvestres. Esse consumo está concentrado em povos indígenas, quilombolas e moradores rurais, que mantêm o uso alimentar de dezenas de espécies. No resto do país, a maior parte das calorias vem de um conjunto restrito de ingredientes industrializados: trigo, milho, arroz, soja e frango.

“Quem tem recursos financeiros consegue acesso a uma variedade maior de frutas, legumes e alimentos frescos, enquanto as populações de menor renda acabam restritas a alimentos ultraprocessados e opções com menor valor nutricional”, afirma a nutricionista Marina Norde, pesquisadora do Sustentarea, núcleo de pesquisa e extensão da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), que não participou do artigo da Nature. Para a pesquisadora, o estudo liderado por Antunes contribui para preencher lacunas sobre populações que historicamente permanecem sub-representadas em pesquisas nacionais oficiais.

“A biodiversidade alimentar que se mantém próxima às capitais da região Norte, por exemplo, está ligada à continuidade de práticas e saberes indígenas. Quando esses conhecimentos se enfraquecem, a alimentação tende a tornar-se menos nutritiva e diversa. Compreender as dinâmicas internas dessas populações é essencial para entender o que está acontecendo com os sistemas alimentares da Amazônia”, sintetiza Norde.

Artigos científicos
ANTUNES, A. P. et al. Healthy forests safeguard traditional wild meat food systems in Amazonia. Nature. 26 nov. 2025.
GOMES, S. M. et al. Biodiversity is overlooked in the diets of different social groups in Brazil. Scientific Reports. v. 13, 7509. 9 maio 2023.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.


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Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

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