imagem: www.eol.org/media/3278715 |
Essa preocupação foi reforçada em um estudo publicado em abril na revista Landscape Ecology por pesquisadores da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Eles cruzaram imagens de satélite com dados obtidos por meio de entrevistas com mais de 900 pessoas em áreas agrícolas próximas ao Parque Nacional da Floresta Kibale, em Uganda, África. A ideia era determinar o grau de contato entre seres humanos e macacos, em qual parte da região estudada ocorriam e se esses fatores aumentavam o risco de vírus pularem de animais para pessoas. Os pesquisadores verificaram que o avanço da agricultura sobre a floresta aumentou a densidade populacional na região. Muitas pessoas se estabeleceram em áreas próximas a fragmentos florestais, onde humanos e animais compartilham o mesmo espaço e amiúde competem pela mesma comida.
A maior proximidade abriu brechas para situações de risco de transmissão de vírus entre animais e seres humanos. Algumas delas foram registradas pelos pesquisadores: um menino mordido por um macaco da espécie Colobus guereza enquanto brincava no quintal de sua casa; um homem embrenhado na floresta em busca de madeira que tentou salvar um macaco de L’Hoest (Cercopithecus lhoesti) das garras de um cachorro do mato; e uma mulher que encontrou o corpo de um macaco-vervet (Chlorocebus pygerythrus) no meio da sua plantação de milho e o manuseou sem nenhuma proteção, entrando em contato com sangue e secreções.
Fonte: https://eol.org/media/3278715 |
Airton Moura Roedores do gênero Necromys multiplicaram-se nos cultivos de cana-de-açúcar no interior de São Paulo e hoje são os principais reservatórios de hantavírusAirton Moura
“Essas situações exemplificam algumas maneiras pelas quais os vírus podem quebrar seu ciclo zoonótico e infectar os seres humanos”, esclarece a bióloga Paula Prist, do Laboratório de Ecologia da Paisagem e Conservação da Universidade de São Paulo (USP). “Pode-se dizer que todas se deram em razão da degradação do meio ambiente”, comenta a pesquisadora, que estuda como o desmatamento em São Paulo afeta o risco de disseminação do hantavírus, transmitido por roedores e responsável por uma síndrome pulmonar pouco frequente em humanos, mas quase sempre fatal.
Uma das causas do aumento do risco de transmissão é a redução da diversidade de espécies em regiões desmatadas. “A transformação de ambientes florestais em pastos ou áreas agrícolas quase sempre diminui a variedade de espécies locais”, explica Prist. “Sem predadores naturais, algumas espécies se adaptam à nova paisagem e se reproduzem de forma descontrolada.” O aumento da população desses animais, muitas vezes reservatórios de vírus, pode elevar o risco de contato e transmissão de microrganismos antes restritos ao ambiente florestal para seres humanos. É o caso dos roedores selvagens transmissores do hantavírus, que se adaptaram bem às áreas de plantações de cana-de-açúcar no interior de São Paulo a partir dos anos 2000.
Ciclo de transmissão
Em geral, ambientes ricos em biodiversidade, com muitas espécies de plantas, animais, fungos e bactérias, também abrigam muitos tipos de vírus. A Amazônia, por exemplo, é considerada a região com a maior diversidade e abundância desses agentes infecciosos no mundo. Muitos deles foram identificados por pesquisadores do Instituto Evandro Chagas (IEC), no Pará. “Temos mais de 220 espécies catalogadas, a maioria transmitida por artrópodes, das quais 90 foram descritas pela primeira vez”, diz a arbovirologista Lívia Carício, chefe da Seção de Arbovirologia e Febres Hemorrágicas do IEC.
Nas florestas, os vírus se encontram em equilíbrio com os seus hospedeiros — em geral, mamíferos —, infectando-os, na maioria das vezes, sem lhes causar mal. Morcegos e ratos são os hospedeiros mais frequentes, por causa da ampla distribuição de espécies e por viverem em comunidades com alta densidade de indivíduos. “Há cavernas com mais de 20 milhões de morcegos da mesma espécie”, diz Souza. Em contato com esses animais, os vírus invadem suas células e usam seu maquinário molecular para se replicar dentro delas. Ao atingirem grandes quantidades de cópias, rompem a membrana celular e ganham a corrente sanguínea, espalhando-se pelo organismo hospedeiro até serem excretados com a urina e as fezes. No ambiente, contaminam outros animais da mesma espécie e o processo se repete.
Nem todos os vírus estabelecem esse ciclo de transmissão. Algumas espécies desaparecem porque não resistem tempo suficiente no ambiente para infectar outro hospedeiro. Outras somem porque sua forma de transmissão é pouco eficaz ou porque não há muitos indivíduos da mesma espécie de hospedeiro para infectar e se propagar em determinada região.
Os vírus que se adaptam a um animal, transformando-o em seu hospedeiro, podem circular por milhares de anos até entrarem em contato com o ser humano. O biólogo José Luiz Proença Módena, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), explica que esse primeiro contato pode não desencadear complicações mais graves. “No entanto”, esclarece o pesquisador, “os vírus estão em constante mutação e podem originar variedades capazes de invadir as células humanas em outra oportunidade”. É o que os cientistas chamam de quebra de barreira: um vírus, antes transmitido apenas entre animais, adapta-se geneticamente e infecta o ser humano. Foi assim com os vírus responsáveis por algumas das doenças que hoje acometem a humanidade, como ebola e Aids. Também pode ser o que ocorreu no caso do Sars-CoV-2 — ainda que não se saiba com certeza qual animal teria servido de reservatório e desencadeado sua transmissão para seres humanos na China.
Essa quebra de barreira também pode acontecer quando os vírus que circulam em uma espécie de animal se adaptam a artrópodes, como os mosquitos. Transformados em vetores, os mosquitos transportam esses agentes infecciosos para os seres humanos, como aconteceu com os vírus da zika, dengue e chikungunya. “Seja como for, para que exista essa quebra de barreira, necessariamente há de ter uma interferência humana em um ecossistema que antes funcionava em equilíbrio”, diz Silva. “Observamos esse fenômeno mais recentemente com os surtos de febre mayaro e oropouche em pequenas cidades da Amazônia”, diz o virologista Pedro Vasconcelos, do IEC. “Essas doenças só não ganharam a mesma dimensão da Covid-19 porque a densidade populacional e a circulação de pessoas na região são muito menores que a de países da Ásia. Do contrário, muito provavelmente algum vírus tão devastador quanto o Sars-CoV-2 já teria emergido da Amazônia e ganhado o mundo.”
Prospecção de novos vírus
Em suas pesquisas, Módena tenta caracterizar como as células do sistema imunológico humano respondem a diferentes vírus que emergiram da natureza. Um deles é o oropouche, transmitido pelo mosquito Culicoides paraensis. Antes restrito a alguns vilarejos da Amazônia, mais recentemente esse parasita intracelular se espalhou por outras cidades do Brasil, inclusive na região Sudeste. Em geral, as pessoas infectadas apresentam sintomas como febre, dor de cabeça e dores no corpo e nas articulações. Em alguns casos, porém, a doença pode desencadear problemas neurológicos, como encefalite e meningite.
Na tentativa de compreender por que a doença é mais agressiva em algumas pessoas, a equipe de Módena analisa os principais componentes envolvidos na resposta imunológica ao vírus. Em estudos recentes, os pesquisadores verificaram que a ativação do mecanismo de defesa contra o agente infeccioso envolve uma complexa via bioquímica, a qual atua no controle do primeiro ciclo de replicação do oropouche dentro das células e na produção dos anticorpos que irão impedir que o vírus chegue ao sistema nervoso central. “Qualquer falha nessa cascata de reações químicas envolvendo genes e proteínas específicos pode comprometer a resposta do organismo ao vírus, fazendo com que o indivíduo infectado desenvolva complicações neurológicas.”
A prospecção e o estudo de novos vírus também podem ajudar a criar estratégias de restauração ambiental. Em um artigo submetido para publicação na revista Journal of Applied Ecology, a equipe de Prist simulou a influência de projetos de restauração florestal sobre populações de roedores que são reservatórios de hantavírus na Mata Atlântica. No estudo, o grupo verificou que a recuperação de 6 milhões de hectares diminuiria em até 90% a abundância de roedores, reduzindo o risco de até 2,8 milhões de pessoas serem infectadas. “Isso mostra que não é a floresta que traz doenças. Pelo contrário. Ela protege o ser humano de novos vírus, como o Sars-CoV-2”, afirma a bióloga.
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