Um estudo publicado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo revelou como o uso indevido de ferramentas digitais, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e os projetos de créditos de carbono, tem impulsionado uma nova forma de grilagem de terras públicas na Amazônia, especialmente no Marajó (PA). O fenômeno, conceituado pelo pesquisador Carlos Augusto Pantoja Ramos como “Metaverso Agrário”, demonstra como a autodeclaração online de terras e transações remotas podem legitimar ocupações irregulares, intensificando conflitos fundiários e ameaçando comunidades tradicionais.
Nova fronteira de conflitos
Nos últimos anos, a comercialização de créditos de carbono ganhou destaque internacional como estratégia para compensar as emissões de gases de efeito estufa. Na prática, porém, há casos em que empresas negociam florestas em pé sem consultar quem mora na região. Em Portel (PA), por exemplo, parte do território municipal estaria comprometida em contratos de carbono desconhecidos pela população local.
Em 2023, a Defensoria Pública do Pará ingressou com uma ação civil públicacontra a prefeitura de Portel, três empresas privadas e uma associação, acusando-os de implementar ilegalmente o projeto de carbono Ribeirinho REDD+. O projeto cobre cerca de 200 mil hectares, sobrepostos a cinco assentamentos agroextrativistas estaduais, onde vivem mais de 1.400 famílias. A ação aponta o uso de Cadastros Ambientais Rurais (CARs) ilegais, ausência de consulta às comunidades e um decreto municipal considerado inconstitucional. A Defensoria pede a anulação do projeto, a proibição de entrada das empresas nas áreas afetadas e uma indenização de R$ 5 milhões por danos morais coletivos.
Outros dois projetos de créditos de carbono na Amazônia, os REDD+ Unitor e Fortaleza Ituxi, também estão sob suspeita de lavagem de madeira extraída de áreas desmatadas ilegalmente. Segundo o investigação do Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA), em junho de 2024, foram detectadas discrepâncias entre os volumes de madeira declarados e os identificados por satélite, indicando possível uso de créditos falsos para encobrir exploração ilegal. As áreas são vinculadas a grandes empresas como Gol, Nestlé, PwC e Toshiba, e geraram questionamentos sobre a integridade do mercado voluntário de carbono. A certificadora internacional Verra suspendeu temporariamente a certificação desses projetos.
Essas denúncias revelam uma nova forma de grilagem de terras na Amazônia, um crime antigo que agora se moderniza com o apoio da tecnologia. O principal instrumento utilizado nesse processo é o Cadastro Ambiental Rural (CAR) — um registro eletrônico obrigatório para todos os imóveis rurais do Brasil, instituído pelo Código Florestal. Criado para integrar informações ambientais das propriedades, como áreas de vegetação nativa, reserva legal, Áreas de Preservação Permanente (APPs) e uso do solo, o CAR é autodeclaratório e tem como finalidade apoiar o planejamento ambiental e a regularização fundiária, além de ser requisito para o acesso a créditos e programas de incentivo rural. No entanto, sua natureza autodeclaratória tem sido explorada por grileiros para legitimar ocupações irregulares, especialmente em áreas públicas e territórios tradicionais da Amazônia.
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Registro de terras no “Metaverso Agrário”
O pesquisador Carlos Augusto Pantoja Ramos, autor do artigo publicado pela Defensoria Pública de São Paulo, chama esse movimento de “Metaverso Agrário” porque, do ponto de vista digital, proprietários surgem — ou se tornam “legítimos” — apenas por inserir dados em sistemas online, sem necessariamente comprovar posse ou propriedade no mundo real. Para ele, a velocidade das transações virtuais pode deixar as comunidades tradicionais à margem das decisões que afetam diretamente suas vidas.
Engenheiro Florestal, Carlos Augusto Pantoja Ramos tem mais de 20 anos de experiência na elaboração e execução de projetos voltados para comunidades rurais amazônicas. Foi diretor de Gestão de Florestas Públicas no Instituto de Desenvolvimento Florestal do Pará (IDEFLOR) e recebeu, em 2017, a Medalha de Mérito Ambiental da Assembleia Legislativa do Estado. Atualmente, atua como consultor socioambiental e é membro-fundador da Academia Marajoara de Letras.
No artigo publicado, Ramos mostra que a facilidade de declarar áreas no CAR, sem a devida fiscalização, pode colocar terras públicas ou de uso tradicional à venda, gerando insegurança para comunidades que, muitas vezes, nem sabem que suas áreas foram cadastradas. No âmbito dos projetos de carbono, segundo Ramos, o problema se intensifica porque muitas negociações são feitas remotamente e pela falta de isonomia e de equidade no acesso aos meios digitais para o registro e monitoramento do CAR, já que o registro é auto declaratórios partiam do privilégio de algumas pessoas em possuir internet de boa qualidade de conexão e recursos financeiros para pagar técnicos em meio à população rural vivendo em muitas situações de vulnerabilidade econômica. O que dificulta o controle e participação das comunidades locais que de fato residem nas áreas rurais da Amazônia.
“Ainda vejo gente fazendo registro de CAR envolvendo comunidades sem que elas saibam disso. Veja o projeto de carbono sendo tramado, articulado, construído sem a participação das pessoas. Elas nem imaginam que isso existe. Então acho que é fundamental trazer esses estudos para que os tomadores de decisão e os elaboradores de leis possam criar travas para impedir esse tipo de destruição.” Declarou Ramos em entrevista exclusiva para o Florestal Brasil
No exemplo do caso Portel, no Marajó, 714.085 hectares do município (principalmente sobrepondo florestas públicas) estão sob contratos de créditos de carbono, cobrindo 28% deste município, equivalente a quase 20% da superfície da Suíça.
Conectar “pessoas com a realidade”
Segundo o artigo, o avanço do chamado Metaverso Agrário pode aprofundar tanto a desconexão entre humanos e a natureza que acabamos adotando uma visão extrema, na qual a natureza é tratada como mera propriedade, reduzida a um recurso a ser controlado sob o argumento de sua proteção em nome do clima.
“Espero que esse trabalho possa conectar as pessoas com a realidade. Você às vezes está longe, está na frente do computador fazendo o trabalho de registro como cadastro rural ou um projeto de carbono ou qualquer outra coisa que envolva a internet e as pessoas reais que estão no campo. Então, muitas vezes, a gente vê só a tela do computador, não imagina as pessoas que estão vivendo lá e que podem sofrer as consequências da sua ação enquanto técnico.
O autor espera que as discussões provocadas por seu estudo estimulem atualizações na legislação e ampliem a fiscalização sobre o uso de sistemas como o CAR. Ele também defende mais diálogo entre governos, técnicos e moradores.
“Espero que esse trabalho gere uma reflexão no setor florestal, ambiental e fundiário do Brasil. Nosso objetivo é conectar o que acontece no computador às consequências que as pessoas sofrem no campo. Sem uma regulação adequada, podemos ter uma realidade digital atropelando os direitos de quem vive na Amazônia. Também acho importante que esse artigo possa trazer regulação, né? Regulação sobre a internet, regulação sobre o próprio CAR.
Próximos passos
Organizações sociais e movimentos que atuam na região do Marajó defendem um maior envolvimento das comunidades em qualquer negociação que envolva suas terras. Já os setores empresariais que investem em créditos de carbono alegam que vêm seguindo normas nacionais e internacionais. Segundo Carlos Ramos, o debate sobre “Metaverso Agrário” tende a se aprofundar: “É uma questão que vai além do ambiental; está ligada a direitos humanos, cidadania e soberania nacional”.
Para mais informações sobre o artigo, acesse o site da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A publicação está disponível na edição v. 10, n. 44 (2025) dos Cadernos da Defensoria, série Cidadania e Direitos Humanos. CLIQUE AQUI
Outras fontes utilizadas na matéria: carbonreport.com.br / SUMAÚMA
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