Carta de Acapu
Caríssimas e Caríssimos,
Escutei assim quando criança:
– O acapu é madeira de dar em doido!
– Que horrível – pensava.
E desdobrava:
– Quantos adultos são doidos? Tem muito acapu por aí?
E desculpem-me pelo início de texto ironicamente violento, nem é do meu feitio escrever essas sandices, ainda mais num momento em que a maldade se espalhou de tal maneira pelo mundo que ganhou ares de institucionalidade, nestes estratagemas do neofascismo.
Eis que cá estou a ler notícias florestais, na tensão entre o ignóbil Salles e o, até semana passada, superintendente da Polícia Federal do Estado do Amazonas, senhor Alexandre Saraiva, que coordenou uma das maiores, senão a maior, apreensão de madeira da História Amazônica[2]. E no escorrer das notícias tão velozes ao passar de dedo na tela do celular, quieto-me em descobrir a notícia da morte de um adolescente de 14 anos no rio Tajapuru, Melgaço, Marajó, acidentado por uma serra elétrica[3] enquanto trabalhava em sua casa processando uma tora de madeira para quando a família vendesse as peças, amenizasse as dificuldades financeiras daquele lar. Uma tragédia que não há como medir nem descrever.
Notícias que estão longe uma das outras à primeira vista. Contudo, como eu sigo nesta minha estranha maldição de relacionar as coisas apatetando nas ramas das árvores, estalou na cabeça que em se tratando de uso dos recursos das florestas e dos rios, precisaria resgatar o que analisava o filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno, famoso por sua “Teoria Crítica da Sociedade”. Sapateia na minha cabeça que os eventos não são na maioria das vezes simples de explicar e avaliar. Para Adorno, “a distância entre a palavra falada e a palavra escrita é ainda maior do que usualmente”. Nada do que se pode dizer pode fazer jus ao que é preciso exigir de um texto. E quanto ocorrem polarizações, mais difícil obedecer ao princípio de que “Deus reside no detalhe”[4].
E é preciso que este Deus Consciente entreolhe as frestas da casa e escreva o que ocorre numa determinada festa para saber quem está lá dentro, quem dança, quem fica de fora em ar deprimido, aquele que embebeda alguém para tirar proveito, aquele que galhofa. Verificar assim provas precisas, conferências que geram o impresso, no suporte que este serve à memória para repasse posterior aos que estiveram presentes naquela festa. A palavra efêmera dita no festejo tem a marca da transitoriedade, porém, o registro gravado é como a impressão digital do espírito vivo. E mesmo quando noticiado, é preciso entender quais são as regras do jogo, inclusive da intenção de simplificar e deixar raso o que é de fato complexo, caso contrário, o tema conservação e preservação da Amazônia não exigiria tantas preocupações, tantos estudos produzidos e tantos planejamentos de tomadores de decisão para evitar a perda de florestas. São questões respondidas por cientistas e aceitas como políticas públicas que nos fazem avançar pouco a pouco em um estágio mais evoluído que nos permita nos afastar do tratamento dado à natureza do puro mercantilismo, desde o pau-brasil.
E correndo no tempo, testemunha o acapu.
Testemunha Vouacapoua americana Aubl. que o Brasil não largou de ser extrativista em seu pior dos significados assim cunhado por Alberto Acosta como A Maldição dos Recursos Naturais[5]. Milhares de tarugos[6] de acapu saem todos os meses dos matos de Portel, Melgaço, Bagre seja para a construção civil da capital paraense, seja para os mourões das fazendas da região. É uma espécie florestal na lista de espécies ameaçadas de extinção[7], sendo permitido pela legislação somente o manejo de produtos como sementes, folhas e frutos, desde que as técnicas adotadas não coloquem em risco a sobrevivência dos indivíduos. Se oficialmente é ilegal a extração de madeira do acapuzeiro, como existem inúmeras ofertas de tarugos na internet?
É nessa doidice emblematizada pelo acapu onde passam-se os anos, décadas e que me fazem crítico do manejo florestal madeireiro como parte de uma verdadeira política pública florestal. Entendo que a Lei 11.284 de Gestão de Florestas Públicas trouxe um caminho sensato, onde a madeira de floresta pública é tratada como um bem de todos, inclusive com arrecadação para União, Estados e Municípios. A soma de áreas de concessões florestais no Pará, é, no entanto, bem menor quando comparada às demais áreas que fornecem madeira, seja de empresas, seja de comunidades. Apesar de se tratar de uma escala menor e de uma intensidade de exploração menor, é mister que cada vez mais comunidades tenham seus planos de manejo para madeira discutidos, regularizados e realmente protagonizado pelas famílias. Bons exemplos existem e são objetos de dissertações e teses sobre manejo florestal. Para evoluir é necessária a efetivação de uma política de manejo florestal comunitário e familiar no Pará. O que não evolui o manejo de florestas para fins madeireiros é: a) o uso de associações comunitárias como “laranjas” para que empresas madeireiras possam explorar sem expor seus CNPJ’s; e b) a teimosia de se aprovarem áreas para exploração de madeira sem a adoção do chamado ciclo de corte, base do manejo florestal para que a mesma floresta tenha tempo de recuperar-se; c) a fragilização das instituições públicas que combatem o desmatamento e as atividades madeireiras predatórias[8].
A região de limite entre os estados do Pará e Amazonas é certamente um dos locais de maior foco de extração ilegal de madeira na Amazônia. E no caso que vivenciei quando atuava no IDEFLOR, hoje IDEFLORBio, em 2010, de suspeita de misturas de madeira legal com madeira ilegal nas balsas da chamada Gleba Nova Olinda, vi que política florestal é antes de tudo uma questão de atitude pública em prol da floresta. Naquela época, a sociedade da região do Tapajós cobrou que não houvessem mais dúvidas sobre os processos envolvendo o licenciamento de atividades madeireiras como cumpridoras dos preceitos do que é manejo florestal. Nós aprendemos com isso?
Ao assistir a defesa de tese de Alexandre Saraiva, vi que este concluíra que o principal vetor do desmatamento da Amazônia seria a extração ilegal de madeira promovida por organizações criminosas[9]. Segundo Saraiva, a agricultura e a pecuária que já tiveram participação relevante no desmatamento nos anos 1980, hoje não influenciariam na mesma intensidade como antes. Trata-se de uma conclusão que talvez nos ajude a medir o momento em que vivemos na Amazônia, porém, peca, em minha opinião, ao não dar o peso destacado ao agronegócio ainda como grande vetor histórico de desmatamento.
Segundo o anuário da Comissão Pastoral da Terra (2020), as Terras Indígenas, por exemplo, seguem sendo alvo de cobiça e violência. Afinal, as Terras Indígenas na Amazônia “fazem limite com grandes lavouras de soja e pastos para criação de boi” e têm sido pressionadas – e invadidas – “para o cumprimento do ciclo: desmatamento da floresta para comércio ilegal de madeira, colocação de meia dúzia de cabeças de boi para garantir a posse da terra, venda da terra para plantação de soja…”[10]. Em outro estudo, advindo do relatório da FAO, O Estado das Florestas do Mundo 2016 (SOFO, na sigla em inglês), aponta-se que o agronegócio “gerou quase 70% do desmatamento na América Latina entre 2000 e 2010… Especialmente na Amazônia, a produção do agronegócio para os mercados internacionais foi o principal fator de desmatamento após 1990, resultado de práticas como o pastoreio extensivo, o cultivo de soja e as plantações de palma azeiteira (dendê)… Segundo a pesquisa, entre 1990 e 2005, 71% do desmatamento na Argentina, Colômbia, Bolívia, Brasil, Paraguai, Peru e Venezuela foi devido a demanda de pastos; 14% os cultivos comerciais, e menos de 2% infraestrutura e expansão urbana…”[11].
Finalmente, nesta tentativa de não perder a cadeia que envolve extratores ilegais de madeira e agronegócio, o relatório da organização ambiental sem fins lucrativos Forest Trends quantificou quanto do desmatamento ilegal do planeta ocorre para abrir caminho para o óleo de palma, abrigos para gado, cultivo de soja e outras commodities agrícolas. A equipe de pesquisa da Forest Trend concluiu que entre 63% e 75% do desmatamento global entre 2000 e 2012 ocorreu para abrir caminho para a agricultura comercial. Dessa porcentagem, de acordo com os autores, de 36% a 65% vinham de licenças fraudulentas, técnicas destrutivas de ocupação do espaço ou outras atividades proibidas formalmente, mas frequentemente ignoradas por governos locais. A referida organização estima que o valor do comércio internacional desses produtos seja de US$61 bilhões anuais[12]. Ou seja, a relação entre perda de florestas e commodities agrícolas ainda é marcante no mundo.
Não podemos perder de vista esta “cadeia de valor” e a participação das partes interessadas na fragilização da floresta e destruição de ecossistemas. O motivo pelo qual não podemos aceitar apenas um maior culpado? Porque é algo complexo, porque é um nó cego, em uma estrutura organizacional que tem vencido o Estado Brasileiro na proteção dos recursos naturais. Que desafia inclusive a forma como a ciência florestal amazônica tem dialogado com as instituições governamentais e com outras ciências na aprovação de planos de manejo florestais coerentes entre discurso e prática.
Enquanto não adotamos uma mudança de era no olhar sobre as florestas e rios, o acapu que dá título a esta carta segue sendo explorado sem uma planificação que garanta sua permanência nas matas de terra-firme do Marajó, Xingu e Baixo Amazonas.
Enquanto não percebemos a floresta como proteção das pessoas, jovens continuarão se expondo a acidentes fatais por não existirem campanhas educativas às famílias sobre os riscos inerentes à atividade madeireira.
Enquanto não admitirmos a floresta como fornecedora de bens e serviços, não serão construídos e disseminados arranjos produtivos que garantam diversidade de uso florestal, com efeitos diretos na renda e bem-estar; e por consequência desta negligência, mais pessoas recorrerão à madeira ilegal, à caça ilegal, ao desmatamento, cujas práticas são impulsionadas pela emergência da fome.
Enquanto não ligarmos os pontos, movimentar-se-ão pelos rios e estradas toras de madeira para o enfraquecimento da floresta, etapa prévia dos tratores, correntões e do fogo que a tudo derrubarão e matarão em nome da cobiça.
Enquanto isso, nos preparativos para a Cúpula do Clima 2021 que ocorrerá amanhã (22 de abril, ironicamente dia da “descoberta do Brasil”), o mundo se volta para o Brasil e sobretudo para a Amazônia. Qual comunicação se dará a partir das decisões tomadas? Haverá realmente comunicação, no sentido etimológico da palavra, de reconhecer o outro enquanto opinião e conhecimento? Povos da floresta, ambientalistas, agricultoras e agricultores familiares e demais profissionais que defendem os recursos florestais serão escutados de tal forma que possam sobrepujar os especuladores financeiros da vez e interesses colonialistas (essa mania!) dos países mais ricos? Ou será uma nova “partilha” da Amazônia? O sequestro é do carbono ou da Amazônia, Salles & Companhia?
A História do desmatamento não é simples de se explicar, nem é feita por um único culpado interno e externo. É um emaranhado que, para ser compreendido, requer estudo, monitoramento, pestanas cansadas, livros e artigos impressos ou em PDFs, diálogos e compreensão dos direitos de povos da floresta; compromissos de tomadores de decisão. Se realmente desejamos punir, de fato, os mobilizadores e mandantes da destruição da Amazônia, precisamos seguir o dinheiro com interdisciplinaridade[13]. Se queremos que o manejo da floresta seja justo, precisaremos agir com transdisciplinalidade[14].
Talvez todo o debate florestal no Estado do Pará nem seja uma luta entre o bem e o mal e sim, como diria a religião budista, uma luta entre a ignorância e o conhecimento.
A ignorância assumida e não combatida, mata.
Aos mestres, escrevi.
Sobre Carlos Augusto Ramos
Nascido em Portel, registrado em Belém, criado no Jari. Sou filho de uma trabalhadora rural, Dona Ana Tereza, do município de Breves-Pa, de um rio chamado Macacos, que veio na busca por dias melhores morar na cidade de Portel-Pa. Nasci de um casamento dela com um operário, Seu Waldir, de uma empresa madeireira, chamada Companhia Amazonas. Cresci em meio às florestas de eucaliptos e pinhos de Monte Dourado, Almeirim-PA. Portanto, cresci conhecendo a atividade florestal extrativista e empresarial. Sempre me fiz pergunta: por que em meio a tanta riqueza, tanta pobreza? Meu projeto de vida é fortalecer organizações comunitárias, tentando construir a cidadania juntamente com famílias agroextrativistas. É uma missão de vida apaixonada, porém consciente de minhas limitações enquanto eterno aprendiz. A imagem obtida por Carlos Ramos que marca o fundo do Blog registra a flor da Bromélia encontrada nas várzeas de Pizarro, no Pacífico Colombiano.
Texto original publicado no blog Meio Ambiente, Açaí e Farinha
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