Nos últimos 20 anos, uma afirmação recorrente em diversos veículos — desde relatórios e publicações científicas até notícias — é de que 80% da biodiversidade global se encontra nos territórios dos povos indígenas. Quem faz uso desse dado geralmente busca ressaltar a importância fundamental dos povos indígenas na conservação da biodiversidade, presumindo que essa estatística tem embasamento científico sólido.
Embora seja amplamente reconhecido que os povos indígenas e seus territórios desempenham um papel crucial na preservação da biodiversidade para as futuras gerações, a afirmação de que 80% da biodiversidade mundial está localizada em suas terras é imprecisa.
O uso contínuo dessa estatística por agências das Nações Unidas, ONGs, jornalistas, conservacionistas, ativistas e defensores indígenas, entre outros, pode acabar prejudicando a própria causa que pretende apoiar. Iniciativas para valorizar o conhecimento indígena na conservação e para proteger seus direitos e governança podem ser comprometidas caso a credibilidade de quem faz essa alegação seja questionada.
É fundamental que a comunidade internacional de conservação abandone a estatística dos 80% e, em vez disso, reconheça o papel vital dos povos indígenas na gestão de suas terras e mares, com base em evidências já disponíveis e confiáveis.
Fato ou ficção?
A alegação de que 80% da biodiversidade mundial se encontra nos territórios indígenas é baseada em duas suposições: que a biodiversidade pode ser quantificada em unidades contáveis e que essas unidades podem ser mapeadas globalmente. No entanto, ambos os feitos são inviáveis, apesar dos avanços significativos na medição da biodiversidade. De acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica — um tratado multilateral que envolve quase 200 países e visa estratégias para a conservação e uso sustentável da biodiversidade — a biodiversidade inclui a “diversidade dentro das espécies, entre espécies e de ecossistemas”, o que a torna difícil de quantificar com precisão.
Mesmo que os pesquisadores utilizassem o número de espécies como uma medida de biodiversidade — um indicador estreito, porém comum — ainda há milhões de espécies não descritas. Além disso, há debates sobre a validade de muitas espécies descritas, e o conhecimento sobre suas distribuições geográficas é muitas vezes inexistente ou incompleto. Isso é especialmente verdadeiro para terras e mares sob gestão indígena, onde os dados são ainda mais escassos.
A origem do número de 80% parece derivar de interpretações equivocadas de declarações anteriores. Como defensores dos povos indígenas (três de nós nos identificamos como indígenas), temos discutido esse dado ao longo de vários anos com líderes indígenas em fóruns de políticas, visitas de campo e projetos de pesquisa. Para rastrear a origem dessa alegação e entender a frequência com que é citada na literatura, buscamos combinações das palavras “indígena”, “80%” e “biodiversidade”, além de suas variantes, em ferramentas como o Google Acadêmico e o Web of Science da Clarivate. A pesquisa abrangeu publicações até 1º de agosto deste ano.
Nossa busca não encontrou nenhuma referência à afirmação dos 80% antes de 2002. Um relatório desse ano, publicado pela Comissão das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável — órgão responsável por avaliar o progresso dos compromissos assumidos na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, no Rio de Janeiro — declarou que os povos indígenas “mantinham 80% da biodiversidade mundial em terras e territórios ancestrais”. Nos seis anos seguintes, essa mesma afirmação, sem fonte atribuída, apareceu em quatro outros relatórios (ver Informações suplementares). No entanto, o relatório do Banco Mundial de 2008 parece ter sido o que mais contribuiu para a ampla adoção do número na literatura acadêmica (ver ‘Verificação de fatos deficiente’).
Em nossa revisão da literatura, rastreamos as citações e encontramos o que pode ser a fonte mais antiga para a alegação de 80%: um capítulo da edição de 2001 da Enciclopédia da Biodiversidade. Três documentos citam essa publicação, incluindo um relatório de 2009 da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). O relatório da FAO afirma: “Aproximadamente 80% da biodiversidade remanescente do mundo está localizada em territórios de povos indígenas.” No entanto, a enciclopédia afirma, na realidade, que “quase 80% das ecorregiões terrestres são habitadas por um ou mais povos indígenas”. Ou seja, a declaração original e a análise que a acompanha referem-se à proporção das 136 ecorregiões terrestres do mundo onde os povos indígenas vivem, e não à proporção da biodiversidade mundial.
O influente relatório do Banco Mundial de 2008 não cita a Enciclopédia da Biodiversidade, mas sim uma publicação de 2005 do World Resources Institute (WRI), uma organização de pesquisa global sem fins lucrativos sediada em Washington, DC. No entanto, a publicação do WRI não apoia diretamente a alegação de 80%. A afirmação mais próxima encontrada na publicação refere-se a sete comunidades indígenas nas Filipinas que estavam “mantendo mais de 80% da cobertura florestal original de alta biodiversidade”.
Do nada
Entre os 348 documentos que encontramos mencionando a alegação de 80%, 186 são artigos revisados por pares, publicados em periódicos como BioScience, The Lancet Planetary Health e Philosophical Transactions of the Royal Society. Além disso, 19 artigos de notícias voltados para públicos especializados também repetem a afirmação, incluindo um na Nature (ver Nature https://doi.org/ndqf (2024) e Informações Suplementares). A alegação foi ainda reforçada pela Convenção sobre Diversidade Biológica e por ONGs como o grupo conservacionista WWF. Um estudo publicado nos Proceedings of the National Academy of Sciences chega a afirmar que os povos indígenas “protegem aproximadamente 85% da biodiversidade mundial por meio da administração”.
Esse número também alcançou grande visibilidade na mídia e se infiltrou na cultura popular. Em 2022, o cineasta James Cameron utilizou essa estatística enquanto promovia sua franquia de filmes Avatar. Tornou-se tão difundido no discurso público que até o serviço de verificação de fatos online GigaFact confirmou a veracidade da alegação (ver go.nature.com/4cwxgcd).
Durante nossa revisão de literatura, identificamos apenas dois documentos que questionam essa alegação: uma postagem de blog (ver go.nature.com/4dqbavs) e uma nota de rodapé em um resumo de política do Consórcio ICCA, uma organização que promove o reconhecimento dos territórios de povos indígenas e comunidades locais. Alguns representantes de povos indígenas admitem que não conseguiram encontrar provas que sustentem a alegação. Além disso, alguns líderes indígenas nos relataram que preferem não endossar o número.
Nossa crítica à alegação dos 80% não deve, de maneira alguma, diminuir os esforços de décadas por parte das organizações indígenas e outros grupos para influenciar políticas internacionais de biodiversidade e clima. Tampouco deve desmerecer o papel crucial e verificável que os povos indígenas desempenham na conservação da biodiversidade global. Por exemplo, uma análise liderada por um de nós (STG) em 2018 revelou que, à época, os povos indígenas administravam ou tinham direitos sobre mais de um quarto da superfície terrestre, cobrindo 37% das terras naturais remanescentes no mundo (ver ‘Fato, não ficção’).
Estudos subsequentes demonstraram que as terras indígenas abrigam mais de um terço das florestas intactas do mundo — ecossistemas que permanecem relativamente inalterados pela atividade humana. Além disso, cerca de 60% de todas as espécies de mamíferos terrestres com dados de habitat confiáveis (mais de 2.500 espécies) têm mais de 10% de suas áreas de distribuição localizadas em terras indígenas. Comparadas com áreas protegidas oficialmente, essas terras sustentam uma quantidade semelhante de espécies, apresentam menos invasões de espécies exóticas e preservam uma proporção comparável de habitat natural.
Nos últimos cinco anos, vários relatórios importantes têm reconhecido o papel essencial dos povos indígenas na conservação da biodiversidade global. Ao contrário de prejudicar esses avanços, nossa preocupação é que a repetição da alegação dos 80% possa enfraquecer estudos rigorosos e iniciativas de conservação já em andamento. Além dos problemas específicos com essa estatística, tentar quantificar numericamente a biodiversidade em territórios indígenas falha em capturar de forma significativa os valores e as visões de mundo dos povos indígenas.
Mais que um número
As conexões profundas entre os povos indígenas e suas terras, mares e recursos desempenham um papel vital na conservação da biodiversidade em todo o mundo. Isso é evidenciado por estudos que se baseiam no conhecimento indígena entre culturas, nas narrativas orais transmitidas por gerações e nas práticas culturais que promovem a gestão sustentável da biodiversidade. Avaliar o impacto dos povos indígenas na proteção da biodiversidade exige considerar as complexas inter-relações entre humanos e a natureza, indo além da contagem de espécies e ecossistemas em uma determinada região.
A alegação de que 80% da biodiversidade mundial está em territórios indígenas assume, de forma implícita, que a caracterização da biodiversidade está concluída. Essa certeza aparente sugere, equivocadamente, que o conhecimento indígena pode não ser necessário para aprimorar a compreensão do estado da biodiversidade nesses territórios. No entanto, tanto os detentores do conhecimento tradicional quanto os acadêmicos reconhecem há muito tempo a importância da governança indígena para a preservação da biodiversidade. Essa compreensão, porém, está apenas começando a ser assimilada pelo público em geral.
A comunidade internacional de conservação deve abandonar a alegação infundada dos 80% e, em vez disso, adotar uma abordagem mais ampla que reconheça os papéis cruciais dos povos indígenas na conservação, restauração e gestão da biodiversidade. Isso requer agir em parceria com os povos indígenas, apoiando sua liderança, reconhecendo seus direitos sobre suas terras e mares e envolvendo-os como líderes ou parceiros iguais nas tomadas de decisão. Também é essencial amplificar suas vozes em fóruns internacionais de biodiversidade e mudanças climáticas, além de fornecer recursos para que possam liderar suas próprias iniciativas de conservação.
Valorizar e integrar genuinamente o conhecimento ecológico indígena resultará em uma abordagem mais justa e eficaz para proteger a biodiversidade do planeta.
Fonte: Nature.
Descubra mais sobre Florestal Brasil
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.