As origens da biodiversidade Amazônia

Em 2017, o geólogo Roberto Ventura Santos, da Universidade de Brasília (UnB), e sua equipe passaram quatro dias em uma piscina de plástico, montada em um hotel em Puerto Maldonado, cidade com 40 mil moradores a leste do Peru.

Rio Marañón, um dos formadores do Amazonas, nos Andes peruanos. Water Loo/Wikimedia Commons

Com a ajuda dos funcionários do hotel, eles esvaziavam na piscina os sacos de terra coletada de até 80 metros (m) de profundidade às margens do rio Huallaga, um dos formadores do Amazonas. Em seguida, enchiam grandes peneiras com os sedimentos que flutuavam e separavam os que pudessem conter um mineral marrom e muito resistente, o zircão. Nas semanas seguintes, nos equipamentos dos laboratórios da UnB, registraram a proporção entre os elementos químicos (principalmente urânio e chumbo) e definiram a idade e a origem das 46 amostras do também chamado silicato de zircônio.

Desse modo, eles ampliaram para 65 milhões de anos o conhecimento sobre a história geológica e ambiental da Amazônia – até então os estudos minuciosos como esse chegavam a até 20 milhões de anos atrás – e contribuíram para detalhar os mecanismos de geração da riqueza biológica da Amazônia, estimada em 40 mil espécies de plantas, 2,5 mil de peixes e 425 de mamíferos. Em um artigo publicado em abril na Journal of South American Earth Sciences, o grupo de Santos reforçou a importância da cordilheira dos Andes na formação das estruturas geológicas da Amazônia, que por sua vez determinaram sua riqueza biológica, e acrescentou uma variável nova: a água do mar, com os organismos que carrega, pode ter vindo também do sul e não apenas do norte, como já se sabia, e deve ter ocorrido milhões de anos depois.

A datação do zircão indicou que, há cerca de 60 milhões de anos, quando a cordilheira dos Andes apenas começava a subir, água e organismos do Atlântico Sul, por meio do rio da Prata, podem ter chegado a terras hoje cobertas por floresta na região de Madre de Dios, no Peru, próxima à divisa com Rondônia. Segundo Santos, polens encontrados em meio aos sedimentos desenterrados no Peru reforçam a origem comum da Amazônia e do Pantanal, que também teria se formado como resultado da elevação dos Andes. Uma das espécies identificadas por meio do pólen é da família das araucárias, plantas hoje típicas do clima frio do Sul do país.

Formados por 104 montanhas com 4 mil metros (m) de altitude média e 8 mil quilômetros (km) de extensão, do norte da Colômbia ao sul da Argentina, os Andes ainda regem o funcionamento e a biodiversidade da maior parte da bacia amazônica de dois modos distintos.

As nascentes na cordilheira e sua contínua erosão fornecem água e sedimentos (terra e areia) que alimentam os rios a oeste da Amazônia. O menor volume de água que chega das montanhas pode ter contribuído para a intensa seca deste ano na região, geralmente atribuída apenas à redução de chuvas decorrente do El Niño. De acordo com um estudo de pesquisadores do Peru e do Brasil publicado em abril de 2022 na Remote Sensing, em resposta ao aquecimento global, a área das geleiras do norte dos Andes sofreu uma redução de 2.429 km2 para 1.409 km2 (42%) de 1990 a 2020, assim fornecendo menos água para os rios.

Os botos-cor-de-rosa indicam que a água do mar já ocupou o interior da Amazônia. HOORN, C. et al. Annual Review of Earth and Planetary Sciences. 2023

“Ainda hoje cerca de 80% dos sedimentos levados pelos rios da Amazônia até o mar vêm dos Andes”, diz o geólogo Maurício Parra, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP), também autor de estudos nessa área. “Ao longo de 60 milhões de anos, os sedimentos que vieram dos Andes formaram camadas com espessuras decrescentes, de 2 km de profundidade a oeste da Amazônia e 800 m na ilha de Marajó, a leste.”

Além disso, os Andes influenciam o clima na região ao barrar a umidade que vem do Atlântico e volta sobre a floresta, aumentando a quantidade de chuva. “O clima em Lima, no Peru, é muito seco, porque a massa de ar úmido não chega até lá”, comenta Santos.

Um imenso pantanal
“O soerguimento dos Andes não foi contínuo, mas por pulsos”, observa a geóloga Michele Andriolli Custódio, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Segundo a pesquisadora, as montanhas reorganizavam a paisagem à medida que cresciam. Ao levantarem um dos lados dos terrenos inundados pela água que vinha do mar do Caribe, forçaram os rios que ainda desaguavam aos pés dos Andes a correrem para leste, na direção do Atlântico. A inversão do sentido dos rios, por sua vez, uniu áreas e populações que antes viviam isoladas ou, inversamente, separou as que viviam juntas, criando-se assim condições para a formação de novas espécies de plantas e animais.

Polens encontrados em sedimentos que retratam as mudanças de vegetação (sentido horário): Crototricolpites annemariae, Grimsdalea magnaclavata, Malvacipolloides, Rhoipites irregularis. Cristian Dimitrius / Inpa.

“Como a rede de drenagem atual só foi estabelecida entre 10 milhões e 9 milhões de anos, a maior parte do tempo os rios corriam para oeste, o sentido inverso do que conhecemos hoje”, comenta o biólogo Carlos D’Apolito, da Universidade Federal do Acre (Ufac), coautor de um estudo sobre as antigas redes de drenagens na região publicado em julho na Sedimentary Geology.

“Os Andes geraram um grande espaço rebaixado a oeste da Amazônia, que virou um pantanal de dimensões continentais, provavelmente com lagos gigantes”, diz ele. “Ali viviam jacarés, tartarugas e peixes, todos enormes. Entre as plantas, os buritizais eram certamente os mais comuns, porque crescem em áreas alagadas, o que não faltava entre cerca de 20 milhões e 7 milhões de anos.” Fósseis de conchas marinhas ainda hoje encontrados às margens do rio Solimões e de seus afluentes testemunham a ocupação do mar, que recuou e hoje está a mais de mil km dali (ver Pesquisa FAPESP nº 329).

Os botos-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), os peixes-boi (Tricherchus inunguis) e as arraias (Potamotrygon spp.), que ainda vivem nos rios da região, reforçam a ideia de que o interior da floresta já foi coberto por água salgada. Antigas populações dessas espécies podem ter sido aprisionadas com o fechamento das conexões com o mar. Ao longo de gerações, adaptaram-se ao novo ambiente e se diferenciaram dos parentes marinhos.

“Grande parte das espécies de plantas e animais que vivem na Amazônia hoje surgiu nos últimos 5 milhões de anos, apesar de estarem inseridas em famílias muito antigas, que já estavam na Amazônia há cerca de 60 milhões de anos”, comenta a botânica Lúcia Lohmann, da USP e da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. Segundo a pesquisadora, as respostas das plantas às mudanças ambientais indicam que a Amazônia é tanto um refúgio quanto um berçário de biodiversidade.

Em 2016, Lohmann coordenou a coleta de 10 espécies de plantas que cresciam às margens dos rios Negro e Branco, ao norte de Manaus. As análises genéticas mostraram que os rios podem ter efeitos diferentes sobre a formação de novas espécies, a chamada especiação: o Negro, por ser mais antigo e largo, favoreceu a diferenciação genética de espécies que cresciam em suas margens, enquanto o Branco, mais jovem e estreito, não apresentou um impacto relevante na diferenciação das espécies de plantas examinadas, embora possa ter favorecido a diversificação de populações de aves e primatas.

Buritis às margens do rio Juruá, no Acre: uma das linhagens de plantas preservadas ao longo de milhões de anos

Não há regras simples. Os rios como barreiras e a variação de altitude ou de temperatura podem favorecer a formação de novas espécies para alguns grupos de plantas e animais, mas não para outros. “Os mesmos fatores podem desencadear processos evolutivos diferentes, impactando a história biogeográfica e de diversificação de organismos amazônicos de formas variadas”, diz ela.

Uma análise de polens e de genes de plantas mostrou as relações profundas entre geologia e biodiversidade, refletida nas formas da floresta, que se apresentava ora mais fechada, ora mais aberta, ao longo dos últimos 23 milhões de anos. “Os períodos de maior soerguimento dos Andes corresponderam aos de maior diversificação para vários grupos de plantas”, comenta Lohmann, uma das coordenadoras de uma síntese sobre a história de formação da vegetação amazônica ao longo desse período, publicado em maio na Annual Review of Earth and Planetary Sciences.

De acordo com esse trabalho, uma floresta contínua que ocupava quase toda a América do Sul foi dividida há cerca de 30 milhões de anos por uma área de clima seco, formando a oeste o que seria a Amazônia e a leste a Mata Atlântica. Em seguida ocorreram mudanças na estrutura e composição da floresta. Por exemplo: entre 23 milhões e 16 milhões de anos atrás a Amazônia abrigava uma ampla diversidade de formas de vegetação, desde manguezais até florestas de terra firme, em um ambiente estuarino, no qual a água do mar e a dos rios se misturavam.

Os polens encontrados nos sedimentos às margens dos rios indicam que pelo menos 48 famílias de plantas já viviam na Amazônia nesse momento. O número de famílias cresceu para 79 entre 16 milhões e 12 milhões de anos atrás; depois caiu para 25 entre 12 milhões e 6 milhões, resultando em uma floresta aberta, que voltou a expandir-se entre 5 milhões e 2 milhões de anos atrás, levando a 117 famílias. “Ao longo de milhares de anos, a vegetação da Amazônia se adaptou a mudanças geoclimáticas muito maiores do que imaginávamos. Talvez seja por isso que tantas espécies de lá que chegaram ao Cerrado, à Mata Atlântica e às florestas da América Central conseguiram sobreviver em ambientes tão diversos”, diz ela. “A história da vegetação amazônica nos ensina como espécies se adaptaram a mudanças climáticas numa escala de milhões de anos, uma informação crucial nos dias de hoje.”

Mas nem tudo está bem. Em um artigo de janeiro de 2023 na Science, Lohmann e outros pesquisadores do Brasil, dos Estados Unidos e de outros países examinaram o impacto de 11 tipos de mudanças de origem humana, como a expansão urbana e agrícola, e 21 naturais, como a elevação dos Andes e o afastamento da América do Sul e da África. De acordo com essa análise, as mudanças de origem humana estão ocorrendo mais rapidamente do que a capacidade de as plantas se adaptarem aos novos ambientes. Se não for detida, essa desproporção pode levar, entre outros efeitos, à redução da quantidade de chuva que abastece as áreas agrícolas do Centro-Oeste e Sudeste do Brasil.

Projetos
1.
Evolução tectono-estratigráfica de bacias intermontanas associadas a ambientes de antearco usando a Depressão Preandina do Chile nos Andes Centrais como estudo de caso (no 19/13349-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Mauricio Parra Amézquita (USP); Investimento R$ 117.223,39.
2. Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: Uma abordagem integrativa (no 12/50260-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Lúcia Garcez Lohmann (USP); Investimento R$ 6.291.421,95.
3. Projeto de Perfuração Transamazônica: Origem e evolução das florestas, clima e hidrologia dos trópicos da América do Sul (no 18/23899-2); Modalidade Projeto Temático – Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Pesquisador responsável André Oliveira Sawakuchi (USP); Investimento R$ 766.559,95.

Artigos científicos
CAYO, E. Y. T. et al. Mapping three decades of changes in the tropical Andean glaciers using Landsat data processed in the Earth engine. Remote Sensing. v. 14, n. 1974. p. 1-21. abr. 2022.
CUSTÓDIO, M. A. et al. New stratigraphic and paleoenvironmental constraints on the Paleogene paleogeography of Western Amazonia. Journal of South American Earth Sciences. v. 124, 104256. abr. 2023.
HOORN, C. et al. Neogene history of the Amazonian flora: A perspective based on geological, palynological, and molecular phylogenetic data. Annual Review of Earth and Planetary Sciences. v. 51, p. 419-46. 31 mai. 2023.
RODRIGUES, M. de A. et al. New insights into the Cretaceous evolution of the Western Amazonian paleodrainage system. Sedimentary Geology. v. 453, 106434. 15 jul. 2023.
ALBERT, J. S. et al. Human impacts outpace natural processes in the Amazon. Science. v. 379, n. 6630. 27 jan. 2023.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.


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