O cenário não é muito melhor para a humanidade. Metade da população global – ou entre 3,3 bilhões e 3,6 bilhões de pessoas – vive em condições de alta vulnerabilidade em relação à maior intensidade e frequência de eventos extremos, com impactos profundos para essas populações, como aconteceu nas inundações recentes em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, secas diminuem a água disponível para agricultura, uso doméstico e geração de energia, por exemplo.
Com a projeção de que em 2050 cerca de 70% da população mundial será urbana, é urgente que as cidades se adaptem ao novo cenário. O problema é agravado nas américas do Sul e Central porque cerca de 20% da população urbana vive em áreas informais e precárias, que exigem intervenções para a redução de risco. Para a urbanista e coautora do relatório Maria Fernanda Lemos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), uma visão sistêmica das cidades para planejar a adaptação no longo prazo é crucial para o enfrentamento da mudança do clima e os riscos de impactos projetados. “Grande parte do investimento em adaptação no mundo todo tem sido direcionada para grandes soluções de infraestrutura em concreto”, observa. “A literatura, entretanto, aponta como promissora a combinação dessas soluções com outras baseadas na natureza, progressivamente mais utilizadas no enfrentamento de impactos como alagamentos, deslizamentos e proteção costeira nas cidades.”
A cada dia que passa, a janela para a adaptação vai se fechando. “Se o aquecimento global exceder 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais, as oportunidades de adaptação a muitos riscos climáticos serão possivelmente limitadas e terão sua eficácia reduzida”, diz a matemática Thelma Krug, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e vice-presidente do IPCC. Ela enfatiza que “cortes rápidos e profundos nas emissões de gases de efeito estufa são críticos se quisermos recuperar a natureza e melhorar a sociedade”.
Ainda de acordo com o relatório, estamos muito mais próximos desse aumento de temperatura do que muita gente imagina: no melhor cenário, chegaremos a 1,5 °C a mais na temperatura global em 2040.
Uma construção meticulosa
O documento, focado nos impactos, na adaptação e na vulnerabilidade à mudança do clima, é resultado do esforço de pesquisadores do mundo todo envolvidos no Grupo de Trabalho II do IPCC. Ao longo dos últimos cinco anos, eles avaliaram artigos científicos sobre esses temas e fundamentaram os resultados do relatório nas evidências e na concordância entre as publicações.
A construção não se dá do dia para a noite. O documento envolveu o trabalho de quase mil pesquisadores em 67 países – 270 autores principais e 675 contribuintes – cada um com décadas de expertise acumulada. De 2019 para cá, a equipe revisou mais de 34 mil estudos científicos sobre impactos, adaptação e vulnerabilidade à mudança do clima. Somados, os comentários de revisão de especialistas e governos nas minutas que precederam a versão final ultrapassaram a casa dos 60 mil.
“As afirmações que escrevemos no relatório não são nossas – é preciso que cada frase possa ser checada e rastreada na literatura científica. É um formato muito rígido porque não dá para expressar opinião”, explica a bióloga Patrícia Pinho, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coautora do relatório. Os relatórios do IPCC usam qualificadores para expressar o grau de confiança nos diagnósticos e nas projeções: baixa, média, alta ou muito alta. “Se encontramos, por exemplo, 15 artigos sobre um determinado tema e todos concordam em uma conclusão, temos alta evidência e alta confiabilidade. Se achamos apenas quatro artigos, mas todos concordam nas conclusões, temos uma baixa evidência, mas alta confiabilidade”, continua.
Lacunas se estreitam
Por mais que o processo de criação de um relatório como os do IPCC seja complexo, cuidadoso e exaustivo, isso não quer dizer que seja totalmente desprovido de falhas. “Existem lacunas na produção científica sobre adaptação à mudança do clima em partes do Sul Global como América do Sul e América Central. Para suprir isso, usamos relatórios de governos e organizações não governamentais”, conta Lemos. O problema é que o nível de confiabilidade diminui, por esses levantamentos não necessariamente adotarem o rigor das publicações científicas.
Essas lacunas, explica Pinho, se devem em grande parte à concepção fragmentada sobre mudança do clima predominante no Brasil. “Avançamos muito no conhecimento do clima como um sistema biofísico, mas não tanto na integração com as ciências sociais. O Brasil é bom em fazer diagnóstico, mas investe pouco em pesquisar soluções. Em adaptação, a produção científica da América do Sul é mais baixa do que a da África e da Ásia”, observa.
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Também existe, ainda, um desequilíbrio de gênero e de origem dos pesquisadores – 41% dos autores são mulheres, enquanto 59% são homens; 43% são provenientes de países em desenvolvimento, diante de 57% de países desenvolvidos – o que reflete a desigualdade de gênero e origem na produção científica global. Apesar disso, há avanços. “Há mais mulheres na autoria deste relatório do que no anterior, e mais pesquisadores de áreas fora das ciências físicas também”, diz Pinho. É importante, porque o gênero, a origem e a especialidade dos pesquisadores afetam o olhar sobre as questões analisadas e a própria seleção de temas relevantes.
Krug conta que o relatório buscou integrar mais fortemente o conhecimento entre as ciências naturais, sociais, ecológicas e econômicas do que as edições anteriores. Além disso, “o conhecimento sobre mudança do clima de povos indígenas e das comunidades locais foi extensivamente usado no relatório como fonte de evidência e exemplos de ações implementadas foram obtidos na América Latina, no Canadá, na África, Índia e Australásia [Austrália, Nova Zelândia, Nova Guiné e ilhas menores da parte oriental da Indonésia]”.
O resultado de todo esse processo é uma compilação sólida do que se sabe até o momento sobre impactos, adaptação e vulnerabilidade à mudança do clima. “Os dados são suficientes para criar senso de urgência e ação. Como o cenário infelizmente não vai melhorar, a incerteza que temos é sobre o quanto poderá piorar”, adverte Lemos.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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