Aquecimento global ameaça principal sistema de correntes marinhas do Atlântico

No filme O dia depois de amanhã, de 2004, o derretimento da calota polar do Ártico faz a circulação do Atlântico Norte entrar em colapso. A mudança nesse sistema de correntes oceânicas é o ponto inicial de uma catástrofe que joga o planeta em uma nova era do gelo. Segundo um artigo publicado em fevereiro na revista Science Advances, o braço atlântico da grande circulação oceânica que circunda os continentes está a caminho de se tornar tão fraco que pode alcançar um ponto de não retorno em decorrência das mudanças climáticas.

Representação da Amoc, corrente mais grossa em branco, perto da costa da Flórida. Nasa

O trabalho não estima quando tal alteração poderia ocorrer, se daqui a poucos ou muitos anos. “Estamos mais perto [do colapso], mas não sabemos quão mais perto”, disse, à agência Reuters, o oceanógrafo René van Westen, primeiro autor do estudo, que faz pós-doutorado na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos. O artigo aponta que o enfraquecimento da Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico (Amoc), nome técnico do sistema, poderá provocar fortes anomalias no atual regime de chuvas e no padrão das temperaturas até o final do século.

Em linhas gerais, a debilidade da circulação tornaria o hemisfério Norte mais frio nas próximas décadas, em especial na América do Norte e no norte da Europa, e o hemisfério Sul mais quente. Não haveria uma nova glaciação global, como mostra, de forma exagerada, o longa de Hollywood, mas as implicações do fenômeno poderiam ser significativas. O trabalho é baseado em modelagem climática. Seus resultados reforçam as evidências observacionais e paleoclimáticas de que a Amoc perdeu 15% de sua intensidade nas últimas duas décadas e se encontra, hoje, em seu momento mais fraco do milênio.

Segundo o relatório de síntese do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de 2023, “há um grau médio de certeza de que a Amoc não vai colapsar de forma abrupta antes de 2100, mas, se isso ocorresse, muito provavelmente haveria mudanças abruptas nos padrões regionais de clima e grandes impactos nos ecossistemas e nas atividades humanas”. A versão anterior do relatório, de 2021, estima que a chance de ocorrer a paralisação completa da circulação atlântica até o final do século varia entre 4% e 46% em um quadro de emissões controladas de gases de efeito estufa (com aquecimento global não muito maior do que o atual) e entre 17% e 55% em um cenário com forte alta das emissões.

Em um artigo do fim do ano passado, pesquisadores de instituições brasileiras e alemãs observaram, também via modelos climáticos, os possíveis efeitos de um colapso da Amoc sobre a floresta amazônica. O estudo, publicado na revista Communications Earth & Environment, indica que, somando-se ao pior cenário de mudanças climáticas, a paralisação da circulação poderia, em um primeiro momento, amenizar o avanço da seca na região. “Mas isso seria apenas um atraso temporário no processo de savanização da Amazônia”, conta a oceanógrafa Regina Rodrigues, do Laboratório de Extremos Climáticos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coautora do estudo.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

A pesquisadora estima que esse retardo seria de aproximadamente uma década: o processo de savanização (a substituição da densa e fechada floresta tropical por uma vegetação mais esparsa, com poucas árvores, similar à do Cerrado) se intensificaria por volta da década de 2050 em vez de 2040. “Esse atraso não produziria benefício algum à Amazônia e o enfraquecimento da Amoc teria grandes impactos no clima mundial”, comenta Rodrigues.

A debilidade da Amoc é causada, de forma indireta, pelo aquecimento global. As atuais temperaturas mais quentes fazem mais gelo derreter na região do Ártico. Isso eleva a quantidade de água doce e diminui a salinidade do oceano perto da parte sul da Groenlândia, local por onde a Amoc passa. A alteração torna menos intensa a circulação oceânica nessa região a ponto de colocar em risco a sua manutenção.

“A água menos salina na superfície do mar congela muito mais rapidamente”, explica a oceanógrafa Letícia Cotrim da Cunha, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Ao solidificar, a água menos salina forma uma camada bem pouco profunda de gelo acima da superfície do mar. “É como se puséssemos um tampão sobre aquela água que deveria afundar”, compara a pesquisadora.

O funcionamento da Amoc é importante para a manutenção do equilíbrio térmico do planeta em condições similares às atuais. Em seu ramo superior, a Amoc transporta água quente, que circula na superfície por ser mais leve, desde as altas latitudes do Atlântico Sul até o sul da Groenlândia. Nesse ponto, as águas superficiais perdem calor para a atmosfera, ficam mais frias e densas e afundam. “Chamamos esse processo de convecção profunda”, diz o oceanógrafo físico César Barbedo Rocha, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP). As águas que submergiram são transportadas pelo ramo inferior da Amoc e passam a circular a 3 ou 4 mil metros de profundidade, iniciando seu caminho de volta às altas latitudes do Atlântico Sul.

Ao passar pelos trópicos e chegar à porção sul do planeta, parte dessa água fria retorna à superfície devido à mistura com águas mais quentes sobrejacentes e de fortes ventos de oeste ao redor da Antártida. Esse é o processo denominado ressurgência. A Amoc, portanto, é um padrão de circulação entre os hemisférios que transporta, em altas profundidades, águas frias do Ártico para a Antártida e, em superfície, águas quentes para o norte.

Medições no hemisfério Sul

Para ter certeza de um possível colapso da Amoc, no entanto, é preciso mais estudos. As medições diretas sobre a dinâmica da circulação começaram apenas em 2004. “Temos cerca de 20 anos de dados, ainda muito pouco para a escala de tempo de um processo tão complexo como a Amoc. Mês a mês, ano a ano, a corrente pode variar muito e essas flutuações têm potencial para mascarar tendências”, conta Rocha. As duas décadas de observações diretas não mostram tão claramente a tendência de enfraquecimento da Amoc que aparece em estudos com modelagem climática, como o da Science Advances.

As medições diretas não são igualmente distribuídas pela bacia do Atlântico: a maioria se concentra na porção norte do oceano, na borda entre a Europa e os Estados Unidos. Muitos pesquisadores do hemisfério Norte dizem que a corrente do Golfo, que começa no Golfo do México e segue pela costa leste dos Estados Unidos até a Europa, é a que melhor indica as variações da Amoc. No entanto, alguns oceanógrafos brasileiros argumentam que o enfraquecimento da circulação é mais observável no hemisfério Sul e perto dos trópicos.

National Park Service / EUA Derretimento do permafrost (solo normalmente congelado) no Alasca em razão do aquecimento global. National Park Service / EUA

Há 13 anos existem observações da Amoc na altura da costa brasileira. Um dos projetos com foco na instalação de sensores e medição de variabilidade no transporte de calor na Amoc é o Sambar, financiado pela FAPESP e coordenado por Edmo Campos, do IO-USP. Observando as mudanças ao redor do paralelo 34,5° Sul – que passa pelo município de Chuí, no Rio Grande do Sul, e pela Cidade do Cabo, na África do Sul –, o projeto já captou alguns indícios de mudança de temperatura em águas profundas na região.

A oceanógrafa física Ilana Wainer, colega de Campos no IO-USP, também está à procura de “impressões digitais” da mudança de equilíbrio na Amoc. “Dados do passado mostram que esse enfraquecimento, ou mudança de equilíbrio, pode acontecer”, diz a pesquisadora. Entre seus objetos de pesquisa, estão as mudanças na circulação do Atlântico Sul no Plioceno Médio, cerca de 3 milhões de anos atrás, quando a Terra tinha uma temperatura média cerca de 2 a 3 graus Celsius (ºC) mais alta que a registrada no período pré-industrial, em meados do século XIX.

Uma das impressões digitais é a mudança que ocorre na bifurcação do ramo sul da corrente Sul Equatorial (que não aparece na ilustração da página 58) perto da costa do Nordeste.  “Se a bifurcação vai mais para sul, isso significa que há mais transporte  para o norte, alimentando o ramo superior da Amoc. Mas, se ela se move para o norte, o transporte aumenta para o sul, enfraquecendo a contribuição para o ramo superior da Amoc”, comenta Wainer. Esse mecanismo ajudaria a explicar por que a corrente está enfraquecendo. Para funcionar a contento, a Amoc depende do transporte de água que sai do Atlântico Sul e chega até a Groenlândia.

“Conduzimos investigações com dados de modelagem numérica em diferentes escalas temporais e encontramos o mesmo comportamento”, diz a oceanógrafa Fernanda Marcello, que faz pós-doutorado no IO-USP sob supervisão de Wainer. Foram analisadas simulações que cobrem os últimos 22 mil anos, desde o fim do Último Máximo Glacial (era do gelo), além de simulações focadas em períodos mais recentes, dos últimos 2 mil anos. Tanto através de simulações quanto de medições diretas, o status atual da Amoc ainda não é totalmente claro, mas o risco de colapso da circulação oceânica não pode ser desprezado.

Projetos
1. Variabilidade interanual dos transportes meridionais através da rede transatlântica Samoc (Sambar) (nº 17/09659-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Edmo José Dias Campos (USP); Investimento R$ 4.568.394,42
2. A Bifurcação de Santos: presente e passado (nº 20/14356-5). Modalidade Projeto Temático; Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Pesquisador responsável Michel Michaelovitch de Mahiques (USP); Investimento R$ 6.336.698,59

Artigos científicos
VAN WESTEN, R. M. et al. Physics-based early warning signal shows that AMOC is on tipping course. Science Advances. 9 fev. 2024.
NIAN, D. et al. A potential collapse of the Atlantic Meridional Overturning Circulation may stabilise eastern Amazonian rainforests. Communications Earth & Environment. 12 dez. 2023.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.


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Arthur Brasil

Engenheiro Florestal formado pela FAEF. Especialista em Adequação Ambiental de Propriedades Rurais. Contribuo para o Florestal Brasil desde o inicio junto ao Lucas Monteiro e Reure Macena. Produzo conteúdo em diferentes níveis.

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