Luiz Fernando Magossi, 62 anos, costuma dizer que, em vez de sangue, tem a água do Rio Piracicaba correndo em suas veias. Essa é a forma que ele encontrou para expressar sua ligação e dedicação ao maior afluente, em volume de água, do Rio Tietê. Há 48 anos navegando pelo rio no interior de São Paulo, ele nunca testemunhou um impacto tão devastador quanto o ocorrido em julho deste ano. Um despejo irregular feito por uma empresa em Rio das Pedras, a apenas 15 km de Piracicaba, causou danos profundos ao ecossistema e afetou severamente a população local.
Nos dias 7 e 15 daquele mês, duas grandes mortandades de peixes foram registradas, resultando na retirada de 98 toneladas de peixes mortos e algas do rio. O crime ambiental alcançou até a Área de Preservação Ambiental (APA) Tanquã, conhecida como o ‘minipantanal paulista’, uma vasta planície de inundação que abrange os municípios de Anhembi, Botucatu, Dois Córregos, Piracicaba, Santa Maria da Serra e São Pedro.
Magossi lidera o Instituto Beira Rio, dedicado à preservação do Rio Piracicaba. Entre as iniciativas da instituição, está a soltura de peixes na APA para repovoar o rio, um trabalho seriamente prejudicado pelo despejo irregular. Na APA Tanquã, entre São Pedro e Piracicaba, num trecho de 70 km, estima-se que cerca de 250 mil peixes foram retirados mortos.
“Já soltamos milhares de peixes no Rio Piracicaba. Só há dois meses, foram 80 mil pacus (Piaractus Mesopotamicus). Deve ter morrido tudo”, lamenta Magossi. “Vamos lutar para reverter isso. Precisa haver alguma compensação, porque, além do impacto ambiental, há o impacto para a comunidade de pescadores daqui”, ressalta.
O inquérito civil aberto pelo Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema) do Ministério Público de São Paulo aponta a Usina São José como um dos principais suspeitos pela mortandade de peixes, devido ao extravasamento de efluentes industriais no Ribeirão Tijuco Preto, que deságua no Rio Piracicaba.
Melaço na água
O documento aponta que o melaço, um subproduto do açúcar produzido pela Usina São José, foi identificado como um dos poluentes responsáveis pela mortandade de peixes no Rio Piracicaba. A presença desse material no rio reduziu os níveis de oxigênio, causando a asfixia dos peixes.
A Usina São José nega a responsabilidade, argumentando que há várias fontes poluidoras na região, incluindo outras atividades industriais, agrícolas e lançamentos de esgoto doméstico, que contribuíram para a degradação ambiental do rio.
“Uma investigação conduzida por uma equipe técnica multidisciplinar contratada pela usina aponta que o vazamento de águas residuárias da empresa não foi o causador da mortandade de peixes no Rio Piracicaba. O rio recebe uma carga significativa de poluentes de diversas fontes, como esgoto sanitário e efluentes industriais e agrícolas, que não foram devidamente analisados pela Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo]”, declarou a usina em nota.
A Cetesb informou à Mongabay que encontrou uma relação direta entre o extravasamento de águas residuárias e melaço de cana pela Usina São José e os dois episódios de mortandade de peixes.
A multa aplicada à empresa, totalizando R$ 18 milhões, inclui agravantes como omissão sobre o vazamento, o alto volume de peixes mortos e o impacto em Área de Proteção Ambiental. Além da multa, a Cetesb vai impor exigências técnicas e medidas corretivas para a usina.
O órgão também detalhou que, no vazamento de águas residuárias em 7 de julho, mel de cana foi arrastado para o Ribeirão Tijuco Preto, uma substância densa e de difícil diluição. “Durante a vistoria, o mel foi encontrado cristalizado na Usina São José. O pH do ribeirão entre os dias 7 e 8 de julho ficou ácido — de 7,4 pH para 5,4 pH —, um comportamento típico da presença de resíduos de açúcar na água”, informou.
“A carga orgânica elevada foi transportada ao Rio Piracicaba, causando uma queda drástica nos níveis de oxigênio, chegando a zero e inviabilizando a sobrevivência da vida aquática. Devido à alta densidade, essa carga poluente foi levada pelo rio até o Tanquã, onde se acumulou, provocando nova mortandade de peixes no dia 15”, concluiu a Cetesb.
Rio sem peixes
A mortandade dos peixes causa um impacto profundo no ecossistema local. Flávio Gandara, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), explica que os peixes desempenham um papel essencial, não só alimentando-se de micro-organismos e plantas, mas também servindo de fonte de alimento para outras espécies, como as aves.
“A remoção desses animais devido à mortandade afeta diretamente essas espécies, principalmente as piscívoras, que dependem dos peixes para sobreviver. Isso altera as características do ecossistema como um todo, afetando tanto a natureza quanto as pessoas que vivem direta ou indiretamente desse ambiente”, comenta Gandara, que também participa do projeto Corredor Caipira, do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão Universitária em Educação e Conservação Ambiental (NACE-PTECA) da USP. Entre as ações do projeto está a recuperação de áreas naturais degradadas em Piracicaba e arredores.
Segundo Gandara, a recuperação do ecossistema atingido pela mortandade levará anos, devido à perda de grandes quantidades de peixes, incluindo espécies de grande porte que demoram a atingir a fase adulta. “A morte de peixes reprodutores impacta as próximas desovas e períodos de piracema, deixando poucos adultos disponíveis para a reprodução, o que afetará as gerações futuras por muitos anos”.
Ele destaca que a velocidade da recuperação dependerá das ações paliativas adotadas, como a soltura de alevinos para acelerar o repovoamento. No entanto, enfatiza: “é difícil prever o tempo exato de recuperação, sendo essencial um monitoramento contínuo das populações para avaliar a reprodução das espécies e focar na recuperação das mais afetadas”.
Auxilio aos pescadores
O pescador José Benedito Veronese, conhecido como Paraná, de 65 anos, vive no Tanquã e nunca tinha presenciado algo como o que aconteceu recentemente: milhares de peixes acumulados mortos no rio em frente à sua casa. Quando a equipe da Mongabay visitou o local, os peixes já haviam sido retirados, mas o silêncio que permaneceu também era inédito para o pescador.
“Quase não tem aves aqui. A essa hora do fim da tarde, ainda dava pra ouvir a barulheira dos pássaros. E se olhássemos pro rio, dava pra ver os peixes pulando. Agora não tem mais nada disso”, lamenta Paraná.
Além de sustentar sua família, a pesca e o ecoturismo — especialmente a observação de aves — eram importantes fontes de renda para a comunidade local. O Tanquã, situado em uma APA (Área de Proteção Ambiental), abriga cerca de cem espécies de aves aquáticas, incluindo espécies migratórias e ameaçadas de extinção no estado de São Paulo. Além disso, a região também protege mamíferos e répteis ameaçados, como a onça-parda, o lobo-guará, a jaguatirica e o jacaré-de-papo-amarelo, reforçando seu valor para a conservação da biodiversidade.
“A questão não afeta só a minha família, mas muitas outras que dependem da pesca para sobreviver. Todos estão com dificuldades. O impacto é muito grande. Sobrevivíamos disso aqui, era o nosso recurso. Às vezes, eu também trabalhava com turismo, levando pessoas para fotografar pássaros. Mas agora nem isso. Mal tenho vindo, porque quase não há pássaros. E antes costumava ter muitos, eles vinham pra comer, era uma abundância que agora desapareceu”, lamenta Paraná.
Em 3 de setembro, o promotor de Justiça Ivan Carneiro, do Gaema, solicitou que órgãos federais avaliassem a possibilidade de assistência financeira para os pescadores locais. Até o momento, os pescadores recebem cestas básicas da prefeitura de Piracicaba e foram orientados a se inscrever em programas sociais, como o Bolsa Família, do governo federal.
A Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo também tomou medidas, reduzindo a taxa de juros da linha de crédito do Fundo de Expansão do Agronegócio Paulista (Feap) de 5% para 3%, benefício que pode ser solicitado na Casa da Agricultura do município onde o pescador é registrado. Um milhão de reais foi destinado para apoiar as famílias afetadas, com um limite de até R$ 25 mil por pescador artesanal. O prazo de pagamento é de até 84 meses, com uma carência de 12 meses.
Paraná, contudo, se mantém firme em sua luta para sobreviver. “Agora é pedir para que Deus dê saúde e força pra gente enfrentar essas batalhas. Eu não sei se o futuro vai ser bom ou ruim. Vou torcer para que tudo isso não caia no esquecimento. O que eu posso dizer é que a natureza está triste pelo que fizeram com suas águas. O silêncio diz isso. Eu fico triste também”, desabafa o pescador.
Fonte: Mongabay | Reportagem de Leandro Barbosa.
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