A Amazônia foi moldada por antigos sistemas agroflorestais

O mito da Amazônia intocada imperou por muitos anos no imaginário popular, uma mata virgem que abriga uma grande biodiversidade sem nunca ter sofrido interferência humana, uma visão ainda frequente principalmente por pessoas que não vivem na região. Entretanto, nos últimos anos essa visão tem mudado graças às descobertas científicas que mostram que os povos pré-colombianos moldaram a floresta amazônica e, grande parte do que conhecemos hoje é resultado das práticas de manejo florestal e da agricultura praticada por esses povos. 
Figura 1: Campos agrícolas indígenas em meio à floresta amazônica (Fonte: Wikimedia Commons)

Em 2018, o artigo “The legacy of 4,500 years of polyculture agroforestry in the eastern Amazon” (O legado de 4.500 anos de policultivos agroflorestais¹ na Amazônia Oriental), publicado na revista científica Nature Plants, traz evidências de complexos sistemas de cultivo com uso de espécies florestais frutíferas e culturas agrícolas por povos pré-colombianos. 

A pesquisa foi liderada pela Dra. Yoshi Maezumi, da Universidade de Exeter (Inglaterra), em parceria com arqueólogos, paleoecologistas, botânicos e ecologistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, da Universidade do Estado do Mato Grosso e da Universidade Federal do Pará. Empregando técnicas de arqueologia e paleoecologia, os pesquisadores investigaram vestígios de carvão, pólen e restos de plantas no solo próximos a sítios arqueológicos em que ocorre a terra preta de índio (Figura 2) e em locais sem ocorrência desse tipo de solo.

Figura 2: Fotografia de um perfil do solo
da terra preta de índio, com explicação de sua formação.


Os dados obtidos das análises arqueológicas²  e paleoecológicas³  foram comparados com inventários florestais atuais da Amazônia oriental, possibilitando verificar a relação entre as práticas agrícolas antigas e a composição florística atual da região. 

Os resultados demonstram que, através do enriquecimento de florestas com plantas agrícolas e frutíferas, a segurança alimentar era garantida para grandes grupos de pessoas, com o cultivo de milho, abóbora, batata-doce e mandioca. Com o passar dos anos ocorria um enriquecimento progressivo com espécies florestais comestíveis, como a castanheira, o cupuaçu e palmeiras, que se tornaram mais abundantes em solos de terra preta de índio (Figura 3). 

Figura 3: Representação gráfica dos achados dos inventários florestais em locais com terra preta de índio e nas demais localidades, onde não ocorre esse solo.

A pesquisa mostra ainda o uso do fogo associado ao desmatamento de determinados locais para o cultivo do milho, cujo pólen encontrado na região mostra que o cultivo desse cereal teve início por volta de 4.300 anos. 

Os resultados do estudo conectam o uso milenar do solo por povos pré-colombianos à composição atual da flora amazônica, indicando que as ações antrópicas, através da agricultura, deixaram um legado duradouro na região.

Os autores ressaltam ainda que, diferentemente dos dias atuais, onde grandes áreas são desmatadas e convertidas para pastagens ou monoculturas, a agricultura ancestral era desenvolvida de forma a incorporar a floresta nos sistemas de cultivo, com pequenas áreas desmatadas e uso controlado do fogo, com retenção de árvores de interesse alimentício e consórcio com as culturas agrícolas em complexos sistemas agroflorestais.


Alguns termos utilizados no texto:
¹Sistemas agroflorestais são sistemas de cultivo que combinam o
plantio de culturas agrícolas com árvores, no mesmo terreno, de modo a
maximizar e diversificar a produção do campo de cultivo.
²Arqueologia é a ciência que estuda as culturas e os modos de vida das
diferentes sociedades humanas do passado, a partir da análise de vestígios
materiais.
³Paleoecologia é a ciência que estuda fósseis para compreender a relação entre antigos seres vivos e o ambiente natural onde habitavam.





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