Eu não sabia bem o que esperar ao chegar ao Cocotá. A grande praça de 110 mil metros quadrados, aterrada há mais de cinquenta anos, era um cenário familiar. Tudo ali parecia praticamente igual ao que eu lembrava: das pistas de skate e quadras esportivas até as calçadas e bancos de concreto. Tudo, exceto pelo curioso e pequeno grupo de árvores que eu estava lá para ver, que mais se assemelhava a uma floresta em miniatura do que a um jardim planejado pela prefeitura.
O Cocotá é um bairro da Ilha do Governador, uma ilha de 39 quilômetros quadrados ao nordeste da cidade do Rio de Janeiro. Grande parte do território é ocupada pela Força Aérea Brasileira e pelo Aeroporto Internacional Tom Jobim (conhecido como Galeão), restando aproximadamente metade da área para os mais de 200 mil moradores. Eu era um desses residentes há alguns anos, o que tornava o motivo da minha visita ainda mais surpreendente: jamais imaginaria que uma agrofloresta – onde árvores, arbustos e plantas úteis ao ser humano são cultivados em conjunto, oferecendo frutas, vegetais e abrigo para a fauna – pudesse surgir bem no coração da minha cidade.
Meus anfitriões já estavam à sombra daquela pequena floresta. Victor Huggo, um arquiteto local, se levantou das raízes de um jambolão (Syzygium cumini) para me cumprimentar. Ao lado dele, Lucas Marques, estudante de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estendeu a mão. Ambos moravam na Ilha do Governador há anos, e nenhum dos dois era o tipo de pessoa que se imaginaria cuidando de uma agrofloresta em uma praça pública. E essa é justamente a essência de toda a iniciativa.
A Agrofloresta do Cocotá nasceu do desejo de alguns membros da comunidade insulana e, ao longo dos últimos sete anos, vem crescendo em um solo inicialmente pobre, sem apoio governamental ou empresarial, em meio à selva de concreto da segunda maior cidade do Brasil. Essa ideia inusitada agora está se expandindo, inspirando mais de uma dúzia de outras agroflorestas e hortas agroecológicas por toda a ilha. Mas o mais surpreendente de sua história talvez seja sua origem.
O projeto agroflorestal começou em 2017 com o plantio, principalmente, de hortaliças. Foto cedida pelo Coletivo da Agrofloresta do Cocotá.
Vegetais e sementes de girassol
Em 2017, a TV Globo organizou um evento na Ilha do Governador com o objetivo de integrar artistas locais e estimular novos projetos culturais na região. O festival no Cocotá reuniu dançarinos, músicos, professores de yoga, grupos de teatro, artistas marciais e muitos outros. Entre as atividades programadas, estava a criação de uma pequena horta comunitária, liderada pelo agricultor orgânico Pedro Vettorazzo, mas plantada pela própria comunidade.
“Eu acho que estava passando com a minha mãe, aí a gente se envolveu e começamos a cavar”, conta Paulo Randall, um skatista local que frequentava a praça. “A terra daquele lugar era muito dura.”
Ao final do dia, mudas de alface, salsinha, cebolinha e couve foram plantadas, mas o envolvimento da Globo com o jardim terminou junto com o evento, deixando o destino da horta nas mãos dos moradores.
Randall foi um dos primeiros a se dedicar à horta, contribuindo com novas plantas. Tinha em casa algumas sementes germinadas de girassol, sobras de uma dieta saudável, e decidiu plantá-las ali. As flores se adaptaram bem ao solo e logo chamaram a atenção dos moradores, especialmente os mais velhos. Ao ver Randall cuidando da horta todos os dias, outras pessoas começaram a oferecer mais plantas para ele.
Pouco a pouco, outros moradores, como Victor Huggo e Lucas Marques, também se envolveram no plantio, na poda e na rega. No entanto, seus cuidados inicialmente não seguiam nenhum método específico, e o solo aterrado e empobrecido da praça dificultava o sucesso dos cultivos.
Com o tempo, ao estudarem mais sobre o assunto e entrarem em contato com estudantes da UFRJ que participavam de projetos agroecológicos, um novo tipo de agricultura começou a tomar forma.
Victor Huggo implementando um método de compostagem de bananeiras picadas e vegetação podada para enriquecer o solo para o cultivo de árvores frutíferas, mostrado aqui no início de 2019. Foto cedida pelo Coletivo da Agrofloresta do Cocotá.
Floresce uma agrofloresta urbana
Agroflorestas são uma prática agroecológica que integra árvores — muitas vezes frutíferas ou medicinais — com o cultivo de outras plantas alimentícias ou a criação de animais. Essa abordagem se baseia no conhecimento do manejo florestal e na teoria da sucessão ecológica, que descreve como as comunidades de plantas evoluem ao longo do tempo; em especial, como certas espécies, ao colonizarem uma nova área, alteram as condições locais, permitindo que outras espécies também prosperem.
Em 2017, nenhum dos atuais membros do projeto comunitário sabia o que era exatamente uma agrofloresta ou como ela deveria ser conduzida.
“Durante o trabalho, cada um estudava individualmente”, relembra Victor Huggo. Aos poucos, foram aprendendo mais por meio de livros, filmes, artigos e pela prática diária.
“A horta foi uma escola”, diz Lucas Marques, que também teve a oportunidade de interagir com outros projetos agroflorestais da UFRJ. “Muito do nosso conhecimento, e até das nossas plantas, veio da universidade.”
A vida silvestre começou a aparecer na horta em seus primeiros dias, como essa lagarta colorida fotografada em 2018. Foto cedida pelo Coletivo da Agrofloresta do Cocotá.
Agora, sete anos depois, esses agroflorestores autodidatas estavam me ensinando como usar chayas (Cnidoscolus aconitifolius), margaridões (Tithonia diversifolia) e feijões-guandu (Cajanus cajan) como adubo verde, que ajuda a acumular matéria orgânica, estruturar o solo e enriquecê-lo com nitrogênio. Cortar bananeiras depois que elas dão fruto também é uma técnica que ajuda a manter a umidade do solo, enquanto adicionar restos de outras podas torna o solo mais fértil para as árvores frutíferas.
Hoje, bananas, jambolões, acerolas, ora-pro-nóbis e muito mais crescem em uma área de cerca de 558 metros quadrados. Mesmo com o aperfeiçoamento das técnicas, a iniciativa nunca perdeu suas raízes ideológicas.
Todos os membros da comunidade são bem-vindos a colocar as mãos na terra, aprender sobre o funcionamento da agrofloresta e, talvez o mais importante, colher os alimentos produzidos ali. Qualquer pessoa pode aproveitar os alimentos e as plantas medicinais da agrofloresta, e ao longo do ano muitas pessoas — especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade — vêm buscar feijões-guandu, abacates, graviolas e outros produtos cultivados localmente.
“Diariamente, há uma rotatividade de pessoas vindo aqui e consumindo coisas”, conta Victor Huggo.
Raízes em expansão
“Tudo germinou aqui”, diz Jefferson José Nogueira, conhecido como Jack, referindo-se à Agrofloresta do Cocotá, enquanto caminhávamos da praça em direção a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) a cerca de 200 metros de distância, situada entre a agrofloresta e a Baía de Guanabara. Envolvido na iniciativa desde os primeiros meses, há três anos Nogueira assumiu a liderança em um dos muitos desdobramentos do projeto.
“Quando chegamos aqui, isso era só mato”, ele comenta. Em 2021, Nogueira liderou o esforço para iniciar outra agrofloresta no terreno da UPA, com uma área semelhante ao espaço original do Cocotá. O que era antes um terreno abandonado, agora abriga bananeiras, maracujás, mamoeiros, goiabeiras, urucuns (Bixa orellana) e moringas (Moringa oleifera), todos crescendo vigorosamente. Ao contrário da floresta original, o terreno da UPA conta com fácil acesso à água, o que permitiu a criação de uma horta vertical e um viveiro de mudas. Há também um espaço com cadeiras e uma mesa à beira da baía, onde os funcionários da UPA podem aproveitar seus intervalos cercados pela natureza. Nogueira ainda planeja plantar cacau e juçara (Euterpe edulis) quando o solo estiver mais enriquecido e a área mais sombreada.
Assim como no Cocotá, Nogueira começou a plantar na UPA sem apoio externo. No entanto, recentemente, após uma mudança na administração da unidade, a nova diretora se encantou com o projeto e contratou Nogueira para cuidar da agrofloresta.
A agrofloresta da UPA inspirada pela do Cocotá foi iniciada na beira da Baía de Guanabara. Foto cedida pelo Coletivo da Agrofloresta do Cocotá.
A inspiração se espalhou. Outras duas agroflorestas estão surgindo no bairro da Ribeira, cultivadas por Alexandre Henrique, um trabalhador da UPA e colaborador de longa data da iniciativa. Ele decidiu aplicar em casa o que aprendeu no Cocotá, transformando o quintal e um terreno abandonado em frente à sua residência em agroflorestas. “Teve um momento em que eu estava mal, e vinha para o Cocotá, comia acerola, folha de ora-pro-nóbis, e isso me sustentava pela manhã”, relembra Henrique. Ele também se recorda de ver uma família colhendo feijão-guandu e comentando que aquele alimento os sustentava no norte do Brasil. “Eu planto para que as pessoas possam ver, pegar quando estiver maduro”, diz ele, acreditando que todos deveriam ter acesso a alimentos cultivados nas ruas.
Essas iniciativas também influenciaram escolas locais. Em 2019, o Colégio Sun Yat Sen, no bairro do Tauá, iniciou um projeto agroflorestal com o apoio de estudantes da UFRJ que faziam parte do Capim Limão, um projeto agroecológico da universidade. A coordenadora pedagógica Gabriela Sinhorelo, junto com a diretora Márcia Paghetti e a adjunta Márcia Simões, tem conduzido um “trabalho de alfabetização ecológica” nos últimos cinco anos. As crianças participaram da criação de um jardim suspenso, uma espiral de ervas, um pequeno pomar e do cultivo de Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs).
Segundo Sinhorelo, além de melhorar a sensação térmica em algumas áreas da escola, o projeto transformou profundamente a mentalidade de todos os envolvidos. “A agroecologia mudou mais do que o clima local, mudou a forma como todos nós vemos o mundo ao nosso redor”, reflete ela.
Área de compostagem na Agrofloresta do Cocotá. Foto cedida pelo Coletivo da Agrofloresta do Cocotá.
Refaunando a paisagem urbana
Isabela Maciel é a única integrante ativa da iniciativa do Cocotá com vínculos acadêmicos Isabela Maciel é a única integrante ativa da Agrofloresta do Cocotá com uma ligação formal ao meio acadêmico. Ela está focada em entender como a diversidade de abelhas responde às mudanças na paisagem urbana. “Queremos entender como a paisagem afeta a biodiversidade nesses agroecossistemas”, explica. Seu projeto de mestrado mapeou 18 áreas agroecológicas na Ilha do Governador, principalmente em escolas e espaços públicos.
Maciel começou a se envolver com a iniciativa em 2018, quando ainda era graduanda, e em 2022 colaborou na agrofloresta da UPA. Seu trabalho anterior investigava a relação entre abelhas e cafeeiros em dois municípios do estado do Rio de Janeiro, mas sua pesquisa sobre a Ilha do Governador ainda está em fase inicial. Sua experiência com a agrofloresta local despertou sua curiosidade científica. “Com o passar dos anos, começamos a ver mais [espécies de abelhas] e também mais pássaros”, observa. Quando chegou, havia poucas árvores e os pássaros quase não apareciam, mas conforme as árvores cresceram, bicos-de-lacre (Estrilda astrild), maritacas (Pionus sp.), tesourinhas (Tyrannus savana) e outras espécies começaram a frequentar o local.
A Agrofloresta do Cocotá oferece um espaço fresco e natural em meio ao concreto quente da cidade, como visto aqui. Foto cedida pelo Coletivo da Agrofloresta do Cocotá.
Maciel não é a única a notar essa transformação. Lucas Marques, estudante de Geografia, também percebeu uma sucessão de espécies de insetos acompanhando o crescimento das plantas na agrofloresta. “No início, as saúvas dominavam, pois adoram solo degradado”, diz. “Mas, à medida que o solo melhorava, novas espécies de formigas, inclusive carnívoras, começaram a surgir.”
Essa dinâmica não se limita às formigas. “Quando transformamos uma horta em um sistema agroflorestal, vemos novos animais aparecendo em ciclos. Houve um tempo em que apareceram muitas aranhas, gafanhotos coloridos, pássaros e cigarras. É fascinante ver essa diversidade e como cada um contribui para o equilíbrio”, relata Marques. Ele ainda se lembra com entusiasmo do dia em que vagalumes surgiram na área: “Foi mágico, já que é algo raro de se ver na cidade.”
Essas experiências de biodiversidade são comuns em outras agroflorestas e hortas agroecológicas da Ilha. Na UPA, Nogueira comentou que, após o crescimento das árvores, várias aves começaram a visitar o local todas as manhãs. Abelhas também são visitantes frequentes, e Maciel instalou armadilhas para monitorá-las. Na escola Sun Yat Sen, a professora Sinhorelo destaca a presença de joaninhas. “Quando o feijão-guandu floresce, temos abelhas e joaninhas por todo lado. É lindo. As crianças andam com joaninhas nas mãos”, conta ela.
Lucas Marques (à esquerda) e amigos aproveitam a sombra fresca da Agrofloresta do Cocotá. Foto cedida pelo Coletivo da Agrofloresta do Cocotá.
Além da Ilha do Governador
O Rio de Janeiro, apesar de toda a urbanização, é uma metrópole relativamente verde, abrigando duas das maiores florestas urbanas do mundo — o Parque Nacional da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca — além de diversas áreas vegetadas menores. Isso permite que, mesmo com tanto concreto, a cidade ainda sustente uma rica fauna de aves e insetos, que podem encontrar nas agroflorestas novos espaços para habitar à medida que esses ambientes se tornam mais convidativos.
As iniciativas agroflorestais urbanas no Rio, porém, não se limitam à Ilha do Governador. Existem agroflorestas no campus da UFRJ e em bairros como Urca, Maracanã e Penha, muitas vezes mantidas por estudantes e moradores que querem tornar a cidade mais verde e melhorar o acesso a alimentos para as comunidades carentes.
Com objetivos simples e recursos extremamente limitados, essas pequenas agroflorestas continuam a prosperar pela cidade. Como Nogueira comentou ao sairmos da UPA: “Quando você não tem essa relação de exploração econômica com o solo, o cuidado com ele se transforma. Você planta o que realmente quer ver no futuro, o que você espera que suas filhas e netos possam usufruir”.
Créditos à Bernardo Araújo.
Fonte: Mongabay.
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