A adaptação climática dos municípios brasileiros ainda é uma das maiores fragilidades do país diante das mudanças climáticas. Segundo estudo da USP publicado na revista Sustainable Cities and Society, menos de 13% das cidades apresentam capacidade institucional e instrumentos legais suficientes para reduzir riscos, planejar políticas públicas e proteger populações vulneráveis dos impactos ambientais crescentes.

O trabalho levantou 25 indicadores sobre a situação dos 5.569 municípios que existiam no país em 2021 e, a partir desses dados, calculou um índice geral de adaptação urbana (UAI, acrônimo em inglês de Urban Adaptation Index). “O índice mede a capacidade institucional, o potencial adaptativo que um munícipio apresenta diante das mudanças climáticas”, explica Gabriela Marques Di Giulio, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), coordenadora do estudo. “Esse potencial é o ponto de partida para que as cidades possam formular políticas públicas com foco na adaptação.”
Os indicadores que formam o UAI se referem a cinco áreas (habitação, mobilidade urbana, produção local de alimentos, gestão ambiental e de riscos climáticos). Os quatro primeiros são de caráter adaptativo geral e o último considera aspectos relacionados à capacidade específica de se adequar e reduzir os impactos produzidos pelas mudanças climáticas. Além de permitir o cálculo do UAI, a abordagem também possibilita produzir índices específicos para cada uma das cinco áreas.
Valter Cunha / Getty Images | Pedro Ladeira / FolhapressLago Sul e favela do Sol Nascente, em Brasília: diferenças socioeconômicas afetam a capacidade de adaptação climática em diversos setores de uma mesma cidadeValter Cunha / Getty Images | Pedro Ladeira / Folhapress
O valor do UAI (e dos índices específicos) varia de 0, a nota mais baixa, a 1, a mais elevada. A mesma metodologia fora empregada em um estudo anterior do mesmo grupo, publicado em 2021 no periódico Climatic Change, que abrangeu os 645 municípios paulistas. Todas as informações usadas para formular o UAI são públicas e de acesso aberto e foram retiradas da edição 2020/2021 da Pesquisa de Informações Básicas de Municípios (Munic) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O novo estudo contou com apoio financeiro da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF).
A capacidade adaptativa dos municípios é muito heterogênea, segundo o UAI. “Achávamos que o índice mostraria uma diferença mais clara entre os municípios de áreas mais ricas do país, como o Sul e o Sudeste, e os de regiões com IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] menor, como o Norte e o Nordeste, mas não encontramos nenhum traço muito forte de regionalidade”, comenta o climatologista Roger Rodrigues Torres, da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), de Minas Gerais, coautor do artigo.
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Apenas 1,4% das cidades obteve notas superiores a 0,81, dentro do patamar mais elevado, e 11,4% atingiram um desempenho considerado entre o razoável e o bom, com UAI entre 0,61 e 0,8. No restante dos municípios, o valor do índice foi inferior a 0,6, com mais da metade deles tendo notas baixas ou muito baixas. A média do UAI para os 49 municípios brasileiros mais populosos, com mais de meio milhão de habitantes, foi de 0,74. Em 4.893 cidades pequenas, com menos de 50 mil moradores, o índice ficou entre 0,33 e 0,44, um desempenho fraco. Nas capitais, a pontuação final do UAI variou significativamente. As melhores tiveram notas acima de 0,8, como Curitiba (0,98), Brasília (0,95) e São Paulo (0,89). As piores não chegaram a 0,6 no UAI, como Recife (0,46), Boa Vista (0,54) e Aracaju (0,54).
Se os valores do UAI não são muito animadores para a maioria dos municípios, a situação é ainda pior quando se leva em conta somente a nota relativa aos indicadores que refletem a existência (ou ausência) de políticas voltadas para gerir especificamente os riscos climáticos. Esses parâmetros, que são muito básicos, medem se uma cidade tem uma defesa civil própria; leis de uso e de ocupação do solo relacionadas à prevenção de enchentes e de deslizamentos; uma carta geotécnica para apoio do planejamento urbano; e um plano local para identificar riscos geológicos e físicos e definir intervenções e investimentos para minimizar seus impactos.
Somente 4,9% dos mais de 5 mil municípios alcançaram notas superiores a 0,6 no índice específico de gestão de riscos climáticos e 65% registraram um escore abaixo de 0,2 (ver mapa abaixo). “Apenas 13% das cidades informaram, em 2020, dispor de planos municipais de redução de riscos e 5,5% tinham cartas geotécnicas”, comenta Di Giulio. “Esses dados são muito preocupantes.”
Ter uma nota alta no UAI não significa que um município está bem adaptado para enfrentar as mudanças climáticas. Indica apenas que ele dispõe de dados e mecanismos, como leis de uso e de ocupação do solo e planos para gestão de riscos ambientais e climáticos, que podem ser empregados no processo de adaptação. Ou seja, o município criou um potencial de adaptação, mas não necessariamente o utiliza. Os pesquisadores ainda não encontraram uma forma confiável de medir se o potencial de adaptação é empregado de forma eficaz pelos municípios. Uma possibilidade é seguir o dinheiro: levantar dados dos municípios sobre a alocação específica de verbas destinadas a combater e minorar os efeitos das mudanças climáticas e desastres. O problema é que obter esse tipo de informação para todos os municípios do país não é uma tarefa simples.
Justiça climática
No artigo recém-publicado, os pesquisadores escolheram duas capitais que tiveram notas altas no UAI, São Paulo e Brasília, e analisaram mais detalhadamente sua situação. A ideia era averiguar se a alta pontuação no índice era um sinal de que a maior cidade do país e a capital federal tinham, de fato, implementado boas políticas públicas de adaptação climática. “Segundo os indicadores de capacidade adaptativa que levantamos para nosso estudo, essas duas cidades teriam os ingredientes necessários para fazer um bolo e se adaptarem, mas não o fazem”, comenta o biólogo Diego Lindoso, do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS-UnB). “Nem todas as ações de adaptação passam pelo poder público, mas sua atuação é imprescindível para que as políticas públicas voltadas para minorar os efeitos das mudanças climáticas beneficiem todos, sobretudo a população mais vulnerável.”
Segundo o artigo, as políticas públicas para minorar os efeitos das mudanças do clima têm pouco impacto sobre os bairros paulistas e as regiões administrativas brasilienses mais pobres. As zonas mais carentes das duas cidades têm menos áreas verdes (um traço que ameniza os impactos dos extremos climáticos) e concentram os pontos de maior risco hidrogeológico e as ocorrências de deslizamentos e inundações. O contraste extremo entre as áreas mais pobres e as mais ricas nas grandes cidades pode ser visto, por exemplo, nas duas paisagens de Brasília que aparecem na abertura desta reportagem: o Lago Sul, uma das áreas mais nobres da capital federal, e a favela do Sol Nascente, a segunda maior do Brasil, atrás apenas da Rocinha, no Rio de Janeiro.
Diminuir as disparidades socioeconômicas no interior dos municípios é também uma forma de melhorar a capacidade adaptativa geral do ambiente urbano, onde vivem mais de 87% dos brasileiros. “O trabalho do grupo da Gabriela Di Giulio é inovador ao realizar a análise da capacidade adaptativa em múltiplas escalas, não apenas no âmbito nacional, mas em nível municipal e intramunicipal”, comenta a engenheira ambiental Cassia Lemos, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que não participou do estudo coordenado pelos pesquisadores da FSP-USP. “A identificação de bairros mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas dentro dos municípios permite o direcionamento de ações de mitigação e adaptação de forma mais eficiente e eficaz. Dessa forma, podemos otimizar os financiamentos em prol da justiça climática no município.” Lemos faz parte da equipe do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que cuida do Sistema de Informações e Análises sobre Impactos das Mudanças do Clima, mais conhecida como a plataforma AdaptaBrasil.
Para o climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que também não trabalhou na elaboração do UAI, o índice proposto por Di Giulio e seus colegas pode ser um bom parâmetro para medir o grau de capacidade adaptativa dos municípios às mudanças climáticas. “Conheço índices similares que usam dados ambientais e socioeconômicos para calcular a vulnerabilidade das cidades a desastres, como deslizamentos de terra e inundações, mas não sua capacidade adaptativa”, comenta Marengo. “Embora não utilize informações sobre o clima nos municípios, o índice UAI pode ser útil para a formulação de políticas públicas nessa área.”
A reportagem acima foi publicada com o título “Risco fora de controle” na edição impressa nº 356, de outubro de 2025.
Projeto
Avançando com o nexo água-energia-alimentos para a adaptação às mudanças climáticas (nº 20/005697); Modalidade Auxílio à pesquisa – Regular; Convênio Universities New Zealand/Te Pōkai Tara; Pesquisadora responsável Gabriela Di Giulio (USP); Investimento R$ 31.998,00.
Artigos científicos
DI GIULIO. G. M. et al. Advancing adaptation of highly heterogeneous urban contexts for improved distributive climate justice: an analysis of specific and generic adaptive capacities of Brazilian cities. Sustainable Cities and Society. 15 jul. 2025.
NEDER, E. A et al. Urban adaptation index: assessing cities readiness to deal with climate change. Climatic Change, 13 mai. 2021.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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